Coruja 12/08/2020A primeira vez que li The King of Elfland’s Daughter, de Lorde Dunsany, foi dez anos atrás, em inglês, e devo dizer que não foi uma leitura fácil. Por mais fluente que eu fosse, o estilo repleto de volteios e o vocabulário bastante formal foram um desafio. Isso não me impediu de achar o enredo fascinante, mas interferiu na experiência de leitura. Assim é que, quando vi que a Wish ia lançá-lo traduzido, empolguei-me. A editora costuma ter grande esmero com a tradução, introduções escritas por especialistas e projetos gráficos lindíssimos. Tinha certeza que essa seria uma oportunidade para apreciar a prosa de Dunsany como ela deve ser apreciada, deixando-se levar pelo lirismo em vez de arfar com o esforço de compreensão.
Assim é que a primeira coisa que preciso dizer nessa resenha é que não me desapontei. A tradução trouxe todo o encantamento que a poesia em prosa de Dunsany merece.
A Filha do Rei de Elfland é um conto de fadas clássico, cheio de ritmo e imagens brilhantes, palha em ouro fiado de rocas enfeitiçadas. É um texto muito descritivo, mas são descrições repletas de símiles, metáforas, imagens de tirar o fôlego em sua beleza.
O enredo básico é bem simples e bem humorado também: o parlamento de Erl decide que a melhor maneira de fazer seu pequeno reino ser conhecido no mundo é trazendo magia para ele - de preferência, um governante com sangue mágico nas veias. Assim eles aconselham o rei, que envia seu filho, Alveric, para as terras além do crepúsculo: Elfland, onde ele deve encontrar para si uma noiva.
Alveric, depois de uma série de aventuras com bruxas, espadas e florestas encantadas, encontra para si ninguém menos que a própria princesa de Elfland, Lirazel. Ele a traz para a terra das coisas que conhecemos e os dois têm um filho, Órion, aquele que trará a Erl a importância que o parlamento desejara.
No entanto, como muito bem diz o ditado popular, tenha cuidado com o que deseja, pois pode vir a se realizar. O parlamento queria apenas um pouco de magia, de modo a tornar seu reino algo notável nas crônicas do mundo, mas uma vez que você abre a passagem, não tem como controlar quanto realmente vai passar.
Como disse antes, há muito de humor na história, um convite para rir da tolice, vaidade e arrogância dos doze supostos líderes que compõem o parlamento. Mas
A Filha do Rei de Elfland também tem correntes mais sutis entre os temas de que trata, em especial duas dualidades que costuram uma boa parte do conflito que vai surgindo dessas páginas.
O primeiro desses contrastes é a questão do tempo e da mortalidade. O tempo não passa em Elfland, o que torna suas criaturas imortais - ao menos, se eles continuam do lado de lá do crepúsculo. Numa determinada altura da história, as fronteiras de Elfland se afastam de Erl e com isso liberam um território de lembranças que tinham ficado presas nesse tempo estático: brinquedos quebrados, vozes esquecidas, ecos de uma época que se passou e que, de repente, não são mais preservadas e se dispersam no ar.
Elfland parece, à primeira vista, um paraíso, onde tudo é beleza e perfeição; mas o anseio por sua magia é também, de certa forma, uma estagnação. É um mundo dolorosamente belo, mas que não muda, não se altera, não conhece evolução. Por isso mesmo, é tão fácil para Alveric levar consigo Lirazel - conscientemente ou não, a princesa se cansou desse tempo imóvel e o encontro com o cavaleiro mortal é mais um resgate que um rapto.
Contudo, mesmo sendo trazida para as terras do lado de cá, onde o tempo pode passar, não é realmente da natureza de Lirazel mudar. E assim, ela, que é um ser todo instinto e magia, confronta-se com os modos de vida e de crenças do povo humano. Esse é o segundo grande contraste/conflito do conto: magia e religião, algo que pode ser visto tanto em Alveric tentando forçar sua jovem esposa à compreensão dos objetos sagrados do Frei, quanto nos avisos do Frei sobre a magia para o resto do povo de Erl.
Dunsany foi um autor prolífico, um dos grandes mestres do gênero fantástico antes mesmo dele se consolidar como gênero. Seu estilo influenciou autores como Lovecraft, Tolkien, Ursula Le Guin e Gaiman (fãs de Stardust provavelmente vão ver muito de familiar nesse conto). Eu já o tinha visto traduzido cá no Brasil antes, numa antologia de contos da Arte e Letra que também recomendo muito. É, enfim, um autor que merecia ser resgatado e difundido por aqui, de forma que só tenho a agradecer à editora por tê-lo trazido nessa edição.
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https://owlsroof.blogspot.com/2020/08/a-filha-do-rei-de-elfland-um-conto-de.html