estevesandre 02/10/2024
O extraordinário no ordinário
Não é preciso ir muito longe para nomear um livro. Muitas vezes, a ideia mais simples é a mais adequada para sintetizar uma história. “Vidas de meninas e mulheres”, de Alice Munro, é esse tipo de romance que carrega todo o seu cerne no título, justamente por tratar sobre o período de transição entre ser menina e ser mulher e a relação entre o primeiro e o segundo ato.
Munro ainda exemplifica que se tornar mulher não ocorre apenas por fatores biológicos, mas pela forma como a menina enxerga outras e não só – perceber-se mulher é também observar homens. E a personagem principal deste livro está constantemente observando meninas, mulheres, meninos e homens – é este exame cuidadoso que a coloca no percurso de descoberta sobre si mesma e sobre os outros.
Há um trecho particularmente emblemático em que a protagonista, em seu anseio de catalogar o mundo e as pessoas à sua volta, narra: “Eu tentaria fazer listas. [...] A esperança de exatidão que incutimos nessas tarefas é louca, de partir o coração. E lista nenhuma poderia conter o que eu queria, porque o que eu queria era tudo, era cada camada de fala e pensamento, cada raio de luz nos troncos ou nas paredes, cada cheiro, buraco no asfalto, dor, rachadura, delírio, imobilizados e unidos – radiantes, perpétuos”.
“Vidas de meninas e mulheres” pode ser classificado como autoficção porque o intento da personagem de olhar para a sociedade e compreender o que esta é em toda a sua vulgaridade é o próprio desejo de Munro, essa autora que ficou conhecida por revelar, por meio da escrita, como os eventos mais triviais do cotidiano podem abrigar tramas extraordinárias.
Extraordinário é o que este livro é. Nada de atípico ou mirabolante acontece. É somente uma menina do interior procurando o seu lugar no mundo e se questionando se, de fato, temos um lugar nele ou estamos apenas tentando caber. Ainda assim, o li como se fosse a história mais instigante já escrita, porque Del Jordan, agora dando a ela seu devido nome, conversou diretamente comigo, me fez compartilhar de suas visões e me ensinou que na literatura eventualmente podemos fazer amigos.
Obrigado, Alice Munro, por me dar essa amiga.
| Resenha originalmente publicada na minha conta no Instagram: @memorialdeumleitor |