livroselabirintos 09/08/2023
Nossos dias
Afirma Pereira (1994), do escritor e tradutor Antonio Tabucchi, vem bem a calhar em nossos dias. Considero-o um texto muito rico. Além de referências literárias e filosóficas, Tabucchi compõe a linguagem literária lançando mão das estéticas que menciona. E transmite a atmosfera tensa e sombria da ditadura salazarista. O contexto aqui é 1938, imaginem.
Em “Nota”, o autor explica como elaborou a personagem, o velho jornalista Pereira. Era apenas um personagem à procura de um autor. De imediato, reconhecemos nessa confissão, a presença do dramaturgo, poeta e romancista siciliano Luigi Pirandello.
Supostamente, a base para essa personagem é um jornalista português, exilado na França, que Tabucchi teria conhecido no final dos anos 1960 e que escrevia em um jornal parisiense. Exercera sua profissão de jornalista por volta de 1945, em Portugal, mas teve problemas com a polícia, uma vez que conseguiu pregar uma peça na ditadura de Salazar.
Eu sabia que depois de 1974, quando Portugal restabeleceu a democracia, ele tinha voltado para seu país, mas nunca mais o encontrei. Ele não escrevia mais, estava aposentado, não sei como vivia, infelizmente tinha sido esquecido.
Na criação literária de Antonio Tabucchi, o Pereira acabou de inaugurar uma página de cultura no jornal vespertino Lisboa, no qual publica traduções de contos franceses do século 19. Nas primeiras linhas da narrativa, ele, Pereira, refletia sobre a morte. Pois, na dança macabra entre luz e sombra, em 1938, quando os nacionalistas espanhóis gritam “Viva la muerte”, a Europa toda fede a morte.
O jogo contrastante entre luz e sombra se entrelaça nas descrições: Era vinte e cinco de julho de mil novecentos e trinta e oito, e Lisboa cintilava no azul de uma brisa atlântica, afirma Pereira. De repente a brisa atlântica parou, e do oceano chegou uma espessa cortina de névoa, e a cidade ficou envolvida por um sudário de calor.
Essas poucas linhas definem aquela Lisboa. A mesma de O ano da morte de Ricardo Reis, do Saramago.
Para colaborar com sua página cultural, o dr. Pereira contrata o jovem amante da vida, Monteiro Rossi, para escrever necrológios, vejam só. Nas escolhas de Rossi, percebemos que se trata de um rapaz subversivo (gosto muito dessa palavra). E para mostrar serviço, oferece uma efeméride sobre García Lorca, uma das primeiras vítimas da Guerra Civil. Descrevia assim a morte do poeta e dramaturgo espanhol:
Há dois anos, em obscuras circunstâncias, deixou-nos o grande poeta espanhol Federico García Lorca. Pensa-se em seus adversários políticos, porque foi assassinado. O mundo todo ainda se pergunta como pode acontecer uma barbaridade dessas.
Todos os dias eu me pergunto sobre as barbaridades a que assistimos.
Mas o paradoxal Pereira não tem coragem de publicar o que Rossi oferece. Quer que o rapaz escreva sobre um tal de Bernanos. O que me lembra que o jornalista é católico, leva a sério a religião. É preciso que o padre franciscano Antonio lhe abra os olhos - você é livre para fazer suas escolhas pessoais, mesmo sendo católico.
E Pereira sente, não sabe, que para ser livre e informar as pessoas de modo correto, é preciso se posicionar. Reflete que a filosofia parece só tratar da verdade, mas talvez só diga fantasias, e a literatura parece só tratar de fantasias, mas talvez diga a verdade.
Assim ele descreve o maior poeta português:
Fernando Pessoa deixou-nos há três anos. Poucos o perceberam, quase ninguém. Viveu em Portugal como um estrangeiro, também porque fosse um estrangeiro em todo lugar. Vivia só, em modestas pensões ou quartos de aluguel. Lembram-nos os amigos, os companheiros, os que amam a poesia.
Ironicamente, o velho jornalista busca informações no Café Orquídea, onde o garçom Manuel relata as últimas notícias que seu primo ouve da Radio Londres, pois os jornais portugueses fantasiavam os acontecimentos. Portanto, para estar informado, era preciso perguntar nos cafés ou comprar jornais estrangeiros, porque em Portugal todos estavam iludidos e reduzidos ao silêncio.
Há quem odeie o Pereira como personagem. Até o chamaram de medíocre. Não concordo. É necessário entender as entrelinhas desse texto. Tabucchi foi engenhoso e sabia bem o que estava escrevendo. Diferentemente do Ricardo Reis duplamente ficcionalizado, que se contentava em assistir ao espetáculo do mundo, o Pereira agiu, fez o impossível e se livrou da autoilusão da pior maneira. As últimas páginas chocam e revoltam, mas são importantíssimas como uma mensagem para que continuemos atentos. Os anos sombrios nos rondam há algum tempo. Contudo, temos uma arma chamada literatura.
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