Renata CCS 27/09/2016Dolores, Dolly, Lo, Lola, Lolita..
“Pela manhã ela era Lo, não mais que Lo, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita.” (p.11)
Por muito tempo fiquei apenas na vontade de ler LOLITA. A sinopse não é das mais agradáveis, leitores se dividem em opiniões controversas, e a obra não tem qualquer finalidade moralista latente. Sim, é um livro que traz uma proposta polêmica: a relação de um homem de meia idade, Humbert, com uma menina de 12 anos, Lolita.
O livro é narrado em primeira pessoa por Humbert. Envolvente e muito irônico em diversas situações, ele tem plena consciência da pedofilia que comete, chegando a admitir, em diversos momentos, que foi ele o culpado por arruinar a vida da enteada. Assim como Nabokov, Humbert é um europeu residente nos EUA, e retrata o modo de vida norte-americano com muita ironia, fazendo troça das pessoas, zombando de comportamentos e situações. Isso sem mencionar as vezes que ele caçoa dele próprio. Faz uso de uma narrativa bem-humorada, e isso, sem dúvida, somou vários pontos a favor da obra.
A relação entre os dois protagonistas nada moralistas é o ponto fortíssimo do livro, que muito aguça - ou distancia - o interesse dos leitores pela obra. O romance de Nabokov ganha atenção por sua ousadia de falar de um assunto que é um tremendo tabu, e exatamente por isso, evitado pelas pessoas. Mas o livro não é apenas uma história de paixão obsessiva e ruína: é também um painel dos EUA revisitado, é uma brilhante utilização da linguagem e suas nuances, e é uma mostra perfeita de como a linguagem pode ser elevada à categoria de arte.
Você deve estar se perguntando o porquê de três estrelas depois de tantos adjetivos. Difícil explicar tantos sentimentos contraditórios a respeito do livro. Antes de mais nada, gostaria de registrar que detesto Humbert. Também não gosto de Lolita. Não gosto de Charlotte e tampouco de Quilty. Resumidamente, não gosto de ninguém daquela história. Mas gosto de Nabokov. De todo modo – e falando francamente – gostar ou não dos personagens simplesmente não tem relação alguma com a qualidade do livro, mas, talvez, tenha a ver com o que colocaria aqui como a minha relação pessoal com a qualidade da leitura: aquela ligação rápida e geralmente prazerosa com a obra, entendendo, ao menos, algumas das motivações do protagonista. No caso de LOLITA, isso não foi possível. Resquícios (ou culpa?) das minhas leituras da juventude? Talvez...
Um outro ponto que me desagradou foi seu ritmo. Nabokov arrasta demais a narrativa, parecendo não querer se deparar com o final da história. Achei muito cansativo os trechos das longas viagens, e nem mesmo a prosa poética do autor ajudou em determinados momentos que, para mim, seguiram um tanto arrastados.
A meu ver, o grande problema é que o romance é narrado apenas por Humbert: ele está no comando da história, selecionando o que será revelado, quando e como será contado. Humbert é um ser desprezível que atravessa o livro todo explorando uma criança. Ele é arrogante e doente, e passa parte da história tentando justificar suas ações. É irônico o contraste entre o Humbert narrador e o Humbert personagem. Enquanto o primeiro se enxerga como uma pessoa inteligente, sensata e irresistível para as mulheres, o segundo não passa de um velhaco asqueroso e covarde. Ele é ridículo, e Lolita sabe perfeitamente disso.
E nós, os leitores, ficamos resignados ao papel de voyeur, completamente à mercê de Humbert, assim como a própria Lolita. Humbert faz questão de romancear seu relato com ímpetos de lirismo calculado para seduzir o leitor. E mesmo em se tratando de um crime horrendo, ele consegue colocar a sua paixão num patamar acima do que o crime que ela representou. A todo momento ele quer romantizar o que faz, culpando a vítima por seus atos. É o discurso do pedófilo. Não é o sexo que corrompe Lolita: é Humbert colocando-a como um objeto de seu desejo que a arruína e desumaniza. A meu ver, fora do olhar doentio de Humbert, não há ninfeta alguma. A ninfeta Lolita só existe através do obcecado Humbert.
A questão é que, o que chamo de incômodo no romance é justamente o que também representa a genialidade do autor. É que ele nos coloca, com sua narrativa convincente e tendenciosa, o amor acima de tudo, fazendo com que algo tão abominável aparente ser, ao mesmo tempo, um discurso convincente de homem apaixonado. É neste momento que uma angustiante desordem de sentimentos parece desafiar o leitor e o romance mostra-se dos mais desconcertantes, mas não menos cativante. É genial! E Nabokov muito faz uso desse recurso: a obsessão do protagonista é, simultaneamente, sua destruição e seu álibi – se é que pode existir um. Mas é essa a grande energia da narrativa, pois consegue nos lançar em uma profusão de sentimentos contraditórios e embaraçosos, e ao mesmo tempo, envolventes e instigantes. Sim, são páginas muito difíceis de digerir, mas há uma recompensa intelectual para quem conseguir ultrapassar a barreira do desconforto.
LOLITA é um livro maravilhosamente bem escrito. Ele trata de um tema terrível: a pedofilia, mas limitar-se a este argumento para repudiar o livro é absurdo. Também é absurdo alguém ver o livro como uma história de amor, principalmente por causa do final, quando Humbert se arrepende. Arrependimento que não tem nada de convincente, pois ele passa mais de 400 páginas narrando o abuso de uma menina, buscando nos convencer como isso é perfeitamente natural, então não é um parágrafo do suposto arrependimento no remate do livro que o torna uma história de amor.
Sim, é possível gostar do livro sem gostar dos personagens. E mais ainda: sem endossar a pedofilia. Não me apaixonei pela leitura, mas também não me arrependo de tê-lo lido. Portanto, recomendo que você leia LOLITA. Leia para entender o que eu estou tentando explicar e o que todas as pessoas que leram vivem tentando explicar. LOLITA é um romance fora da lei, condenável e, mesmo assim, sedutor.
Vale a cada um ter a sua própria perspectiva.