Tuca 10/11/2022Desculpa se essa resenha está parecendo um fluxo de consciência, esse livro me deixou meio perturbada.
Mary Elizabeth Braddon não é um nome muito conhecido no Brasil, principalmente pelo vácuo de traduções de suas obras, mas ela foi uma autora bem-sucedida do século XIX. Sua obra costumava ser classificada como romances de sensação, mas parte dela também trazia características do gótico, como em “O segredo de Lady Audley” (1862), narrativa que marcou o auge de sua carreira.
Um livro complicado de comentar, pois o mistério é parte essencial dele, apesar de que de início já sabemos qual seria o tal segredo de Lady Audley. Assim, vou tentar ao máximo fugir de qualquer possibilidade de spoiler. Mas fica o aviso de não ler a introdução presente na edição antes do livro, porque a partir dela e de onde a autora se baseou para escrever a trama já dá para compreender o que será dessa narrativa. Ele é complicado também pelo surgimento de sentimentos controversos e pela dificuldade de eu compreender se havia uma crítica ou uma mera reprodução social que me tirou do sério (pesquisando, eu consegui descobrir que o último parágrafo em especial foi aparentemente uma conclusão irônica da autora – coisa que eu tenho dificuldade de entender – então no quesito: “vou questionar essa sociedade vitoriana”, ela ganhou pontos comigo, depois que eu finalmente consegui raciocinar o que foi feito).
Quem era Lady Audley afinal? Esposa inocente de Sir Michael ou uma fria alpinista social? Quando o melhor amigo de Richard Audley, sobrinho de Sir Michael, some, o jovem começa a desconfiar que a esposa do tio tenha alguma coisa a ver com o sumiço. Esse é o básico da história e o máximo de enredo a se saber antes de começar a lê-la.
Em termos de linguagem, “O segredo de Lady Audley” é muito bom e de fácil compreensão (palmas para tradução aqui também), porém eu não consigo me deleitar com o foco em um personagem que ao longo do livro é claramente misógino, e que é pintado na trama como um mocinho baluarte da honestidade, da moral e dos bons costumes. E por mais que haja a justificativa da época em que foi escrito, a análise de uma obra passa pela compreensão do pensamento do período, mas se alia aos olhos do pensamento do leitor. Todos os personagens masculinos são insuportáveis, não tem UM que se salve. Mas todos são vistos como inocentes vítimas. É uma história que tenta jogar uma interpretação mais acinzentada no início ao brincar com a empatia do leitor, mas que termina na obviedade, e na dualidade do bem contra o mal, possivelmente, de propósito, porque é assim que a sociedade julga seus membros.
No geral, eu consigo lidar com o maniqueísmo das histórias clássicas britânicas, porém isso acontece porque o enredo tende a construir os personagens de forma a direcionar a empatia do leitor para aqueles considerados bonzinhos e fazer a gente odiar os maus. Não foi o que aconteceu comigo em “O segredo de Lady Audley”, situação que eu também passei em “O pecado de lady Isabel”. A trama me leva a ter empatia pelo personagem considerado vilão, e a minha visão de mulher do século XXI me faz detestar todos os homens nessa trama, principalmente o protagonista que é muito misógino. E que eu acredito, por evidências do próprio enredo, que talvez sua misoginia possa vir também de uma paixão secreta do protagonista pelo melhor amigo (algo que eu ao ler algumas resenhas e artigos científicos, descobri que é compartilhado por outros leitores e estudiosos do livro). Assim como “O pecado de Lady Isabel”, considero “O segredo de Lady Audley”, uma narrativa bem escrita, mas que feita em séculos posteriores teria resoluções diferentes, e que trata personagens complexos com um recorte simplório de preto no branco. Talvez porque a sociedade vitoriana não estivesse preparada para dar de cara com essa complexidade. Quem o enredo nos leva a entender como grande vilão para mim é um ser humano de caráter duvidoso (e não muito inteligente), mas desesperado (e obrigada, Nolan Boyd, por me fazer entender que isso não foi uma ilusão minha); além disso, outros envolvidos têm sua parcela de erros e pecados e não são julgados de maneira alguma. Eventualmente, comecei a entender que o livro foi escrito para ser incômodo, mas não acho que os leitores da época o tenham compreendido de tal forma. Parte da ironia que a autora propõe é extremamente sutil, e apesar dos meus questionamentos, ela pode ter vindo de um olhar mais moderno. Será?
Não penso que a trama deveria ter o final de família feliz de propaganda de margarina que teve (apesar de entender, que talvez, para aquele momento histórico não houvesse outra saída, e que a autora o propôs de forma irônica, mesmo assim, ele me desestabilizou), e nem penso que Robert fosse o herói que o narrador quis parecer que ele era. Porém, é interessante o fato de a obra ser considerada como subversiva aos padrões de gênero pela construção de personagens masculinos fracos, enquanto cria algumas personagens femininas manipuladoras (e vale destacar que o “baluarte da honestidade” tem seus momentos de manipulação também). O que eu não concordo, uma vez que as mulheres são vistas como as manipuladoras dos “pobres homens ingênuos” em vários romances anteriores e posteriores a esse (já começando por Adão e Eva na Bíblia). Tá mais para perpetuador de padrão de gênero mesmo, com a exceção de que nessa história a manipulação era real. O que podemos falar aqui em quebras de padrões é o fato de Lady Audley não ser o modelo de conduta da mulher vitoriana, entretanto, ela também não é modelo de conduta de nada.
“O segredo de Lady Audley” é um romance bem relevante do século XIX, mas para mim é uma obra cujas discussões são mais interessantes ao pensar as teorias de gêneros atuais, em especial quando se teoriza sobre os comportamentos de Lady Audley e Robert como fugas da heteronormatividade (existe estudos sobre isso) do que a historinha do bem contra o mal. Além de ter muito pano para manga para debates quando nos afastamos desse dualismo também. É um romance muito complexo na sua narração principalmente. A experiência de leitura foi desgastante pela reprodução social de certos comportamentos masculinos abomináveis que por fim foram exaltados, e também pela previsibilidade. Mas essa é uma obra que vai agradar vários leitores dos romances de sensação, especialmente os fãs de Wilkie Collins (o que eu também não sou rs, os livros de Collins são uma verdadeira roleta russa para mim). Mesmo assim, eu leria outros trabalhos da autora, em especial para observar se ela permanece na mesma fórmula de construção de personagens e da ironia sutil.
Uma coisa que eu não posso deixar de mencionar, e que foi uma das reflexões mais interessantes que eu “pesquei” ao ler um artigo de Nolan Boyd é o fato (não sei se intencional ou não) de que o final do “vilão” tem mais a ver com a ofensa a uma determinada instituição social do que com atos criminosos mais graves. Isso fez um boom na minha cabeça. Uma vez que proposto como crítica isso é um tapa na cara da sociedade conservadora, nesse ponto consigo enxergar a subversão na história. Então vou morder minha língua sobre meu posicionamento acerca do livro assim que eu o finalizei. Passei raiva pra caramba, foi incômodo, foi previsível, mas é uma narrativa que após uma boa reflexão é possível enxergar como questionadora quanto aos julgamentos sociais. Contudo, parte dessa interpretação que eu trouxe aqui, a qual é abarcada por alguns estudiosos, não é o entendimento que muitos dos leitores têm. O que eu posso dizer é que esse livro me deixou com muitos sentimentos opostos. E que talvez o segredo de Lady Audley torne-se muito mais interessante pela interpretação dúbia do livro do que pelo seu mistério em si.
Caso alguém tenha interesse o artigo de Nolan Boyd citado chama-se: “Queercrip Temporality and the Representation of Disability in Lady Audley's Secret”.
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