Rafael 14/12/2011
Contrastes e semelhanças da vida.
Caminhos Cruzados é uma das obras do Erico que mais me cativam. A riqueza de detalhes na descrição das personagens, situações, ambientes, próprias desse consagrado escritor, me permite enxergar nitidamente a história e gravá-la nos arquivos de minha memória.
Nesse romance, tive uma ampla visão da vida e da realidade cotidiana com personagens como Fernanda, Noel, Vera, Chinita, Salu, Prof. Clarimundo, João Benévolo, Dodó, Leitão Leiria e Armênio Albuquerque. Personalidades muito distintas, vidas diferentes e, no entanto, são caminhos que não poderiam deixar de se cruzar. Há esse constante contraste entre a riqueza e a miséria, a piedade e o orgulho, a fantasia e a realidade, o sonho e a falta de esperança, o entusiasmo e a inércia, a vida e a morte.
Personagens como Noel e João Benévolo representam a dor e a tristeza de se viver alienado em uma eterna fantasia. Noel cresceu sob os cuidados e as histórias de tia Angélica, mergulhado no mundo dos contos-de-fada, dos livros, do imaginário. Na escola, sempre foi tímido, dependente dos cuidados da amiga Fernanda, que lhe tomava a f rente e o defendia de todas as provocações. O tempo foi passando e Noel sempre com medo de encarar a vida, os homens, a realidade; e, agora, já adulto e formado na faculdade, sente as consequências do seu isolamento e da sua fraqueza.
João Benévolo, no entanto, não possui a riqueza e o conforto em que Noel vive. É um homem pobre, desempregado, com mulher e filho doente, e sem nenhuma atitude, nenhuma coragem para melhorar de vida. A sua família vive desalentada, sem dinheiro para pagar o aluguel e as contas atrasadas, para comprar o leite e o remédio do filho e colocar comida na mesa todos os dias. Não obstante todos esses problemas da vida real, João Benévolo vive ausente, na sua fantasia, lendo e imaginando-se na pele de grandes heróis e aventureiros dos romances. A mulher sempre a fazer costura e a sofrer, o relógio sempre a badalar tristemente as horas, o filho sempre a chorar de dores de barriga no quarto. Assim passam os dias, e João nunca procura emprego, espera acontecer um milagre ou alguma coisa estupenda como nos livros: um velho conhecido que lhe apareça e ofereça dinheiro, trabalho. Enquanto isso não acontece, João Benévolo prefere esquecer a realidade e trancar-se no seu mundo imaginário.
Outras duas personagens muito parecidas são dona Eudóxia e dona Maria Luísa. A primeira é a mãe de Fernanda e Pedrinho, uma senhora pessimista e agourenta, que gosta de farejar desgraças em todo canto. A segunda, uma mulher infeliz com a nova vida, que mudou-se com a família para uma grande e luxuosa mansão desde que seu marido ganhou na loteria, e sente saudades da paz que reinava a humilde casa onde morava, em Jacarecanga. O que as duas tem em comum: a mesma mania de viver lamuriando, reclamar de tudo e de todos, de fazer-se mártir, adivinhar coisas ruins, imaginar desgraças.
A filha de dona Maria Luísa, Chinita, é uma moça alegre e cabeça-de-vento, sempre a sonhar com as estrelas de Hollywood, os bailes, as festas, os luxos, as cenas de cinema. Quando a família tornou-se rica e mudou-se para Porto Alegre, Chinita conheceu um rapaz chamado Salu. Este vive despreocupado com a vida, gosta de desfrutar novos amores, de sentir-se admirado e invejado. Os dois vão ficando cada vez mais apegados um ao outro, a medida em que se vão encontrando. Salu sente acender-lhe por Chinita um desejo carnal, uma sofreguidão de fruto proibido, uma imensa vontade de senti-la, amá-la, possuí-la. Em Chinita, a mesma paixão se acende, e ela sente vontade de descobrir, com ele, os grandes mistérios e sabores do amor, entregando-se abandonadamente a suas carícias.
Porém, não é só em Salu que Chinita desperta desejo e interesse. Vera, filha de Dodó e Leitão Leiria, sente-se completamente atraída pela amiga. Aborrece-a ver Chinita às voltas com o rapaz, bem como a aborrece a impertinente devoção de Armênio Albuquerque, que a segue como um cachorrinho abandonado, sempre a tentar lhe fazer agrados e puxar conversas. Vera trata-o com indiferença e, se lhe responde, é por simples delicadeza.
Na casa de Vera, dona Dodó e Teotônio Leitão Leiria vivem em função do dinheiro e da exibição. Dodó é a presidenta da Sociedade das Damas Piedosas, está sempre envolvida em fazer caridades, visitas aos pobres, e doações aos hospitais e asilos. O que a move é, de um lado, o sentimento religioso e a inspiração em Santa Teresinha, e de outro lado, o secreto gosto pelas aparições nos jornais, pelas entrevistas e pela exibição pública. Já seu marido, Teotônio, é um homem de negócios, também devoto e religioso, porém corrompido pela ganância, pelo dinheiro e pela política. Não obstante, o casal vive em plena harmonia, um a ignorar os defeitos do outro, exaltando-se como os seres mais puros do universo e merecedores da graça de Deus.
Fora deste círculo, vive Fernanda com sua família, numa casa da rua Travessa das Acácias. Fernanda sustenta o lar com o seu ordenado e a sua maturidade, sempre a tolerar as impertinências e os agouros da mãe. Na verdade, Fernanda é quem faz o papel de mãe, tanto para dona Eudóxia quanto para Pedrinho, seu irmão mais novo. Esse anda apaixonado por uma prostituta chamada Cacilda, a mesma que já esteve com Salu e com o marido de dona Dodó. Fernanda vive a trabalhar, a sonhar um pouco, a encarar a vida com coragem e a encontrar-se com seu antigo amigo de infância, Noel. Ela sente vontade de protegê-lo, de ampará-lo, pois sabe o quanto Noel é frágil e triste, e porque, no fundo, por mais que relute um pouco em reconhecer, ela o ama. O que Fernanda ignora é que Noel sente o mesmo por ela, mesmo que timidamente. Ele passa os dias entediado, já não sente o mesmo conforto de antigamente nos livros e nos discos, está fazendo-se homem e quer mudar de vida. Sente agora a vontade de ter uma presença humana por perto, uma alma viva, a lhe alegrar, a falar, a amar. E existirá alguém melhor que Fernanda para isso?
Na frente da casa de Fernanda, mora o pontual e correto professor Clarimundo: um homem metódico e inteligente, que vive sozinho no seu apartamento. Muito dedicado ao estudo da ciência, Clarimundo é fiel seguidor de Albert Einstein, e também defende com paixão a gramática, o estudo das línguas e a matemática. Vive a organizar com grande método os seus horários e suas aulas e, nas horas vagas, fica a observar distraidamente o cotidiano da vizinhança. Dessas horas de observação e meditação lhe floresceu uma brilhante ideia: escrever um livro, O observador de Sírio, em que ele há de narrar, com uma mistura de ciência e fantasia, como um ser de outra dimensão observa a monotonia da vida na Terra. Imagina que esse livro há de ser revolucionário e abalar toda a sociedade.
No meio de toda essa trama que destaca as diferenças de personalidade e os contrastes da vida urbana, pode-se perceber um grande aspecto em comum em todas as personagens: a busca pela felicidade. Seja através dos livros, ou do dinheiro, ou da religiosidade, ou do amor; ou até mesmo na ânsia desesperada de reviver a juventude, como a mãe de Noel. Seja como for, todas as pessoas vivem irremediavelmente buscando a sua própria felicidade. Alguns são mais egoístas, alguns pensam na felicidade dos outros também, mas há sempre esse secreto sentimento a mover todas as pessoas que, de alguma forma, se interessam pela vida.
Com as personagens de Caminhos Cruzados, pude entender melhor como funciona a vida em sociedade, pude compreender claramente a riqueza e a miséria, e enxergar, com os olhos da alma bem abertos, as alegrias e as tristezas que acompanham a humanidade.