Katia Rodrigues 05/01/2022
O muquirana
A história da peça O santo e a porca parece muito simples: um velho muquirana que passou a vida guardando dinheiro em uma porca. Euricão é uma mistura de Sr. Burns, Tio Patinhas e Seu Lunga só que muito pior. Economiza nas roupas, na comida e até no salário dos empregados, que vivem em situação análoga à escravidão:
"DODÓ- O golpe dele é esse! Deu o primeiro jantar, cobrou o preço. Caroba não pôde pagar porque não tinha recebido o ordenado. Agora, quando Caroba cobra o ordenado, ele diz que ela primeiro pague o jantar. Como Caroba não tem o dinheiro, não paga. Assim, por conta do jantar que ele dá cada mês, economiza o salário dos empregados.".
"EURICÃO-E você, Santo Antônio, deve se contentar agora com minha pobreza e minha devoção. Eu não o esqueci. Não deixe que esses urubus descubram meu dinheiro! Faça isso, meu santo, e a banda de jerimum que eu ia dar a Caroba será sua. Menos as sementes, viu? As sementes eu quero para fazer xarope e vender no armazém. Ganha-se pouco, mas sempre é alguma coisa para se enfrentar a crise e a carestia!"
Essa é uma situação clássica nas obras de Suassuna: uma história que através da aparente simplicidade, como em certas parábolas bíblicas, esconde complexas alegorias religiosas e éticas, usando como fio condutor o humor. Sem deixar de ser uma divertida obra de ficção, esse enredo é também uma representação da condição humana, como esclarece Suassuna:
"O santo e a porca apresenta a traição que a vida, de uma forma ou de outra, termina fazendo a todos nós. A vida é traição, uma traição contínua. Traição nossa a Deus e aos seres que mais amamos. Traição dos acontecimentos a nós, dentro do absurdo de nossa condição, pois, de um ponto de vista meramente humano, a morte, por exemplo, não só não tem sentido, como retira toda e qualquer possibilidade de sentido à vida."
"Mas, se possível, olhem esta peça — assim como o conjunto de meu trabalho de escritor, dentro do qual ela, como todas as outras, deve ser entendida — antes de tudo como uma história, contada por uma pessoa, mas que mantém um contato profundo e amoroso com a vida."
"O que eu procuro atingir, portanto, é, se não a verdade do mundo, a verdade de meu mundo, afinal inapreensível em sua totalidade, mas mesmo assim, ou por isso mesmo, tentador e belo, com seu sol luminoso e selvagem, tão selvagem que não podemos vê-lo."
A meu ver, essa peça passou sem uma ruga pelo crivo do tempo, e conserva intacta sua sedução artística. É impossível não imaginar, na odisseia desastrosa do muquirana Euricão contra os inimigos que ele próprio fabricou e que acabariam por derrotá-lo uma descrição de algo mais inexorável e universal, o desafio permanente que é a vida.
Leiam!!!! ??
Ig: @ingrisias