Ana Sá 05/09/2022
Histórias de amor dentro e fora do livro [resenha que não é bem resenha]
[A quem possa interessar, dei dica de turismo literário no final da resenha!]
"A desgraça afervora ou quebranta o amor?
Isso é que submeto à decisão do leitor inteligente. Factos e não teses é o que eu trago para aqui. O pintor retrata uns olhos, e não explica as funções ópticas do aparelho visual”.
O enredo de "Amor de Perdição" não é de todo inédito: um amor proibido devido à rivalidade de duas famílias, acrescido de uma terceira personagem que dá forma a um triângulo amoroso que não é bem um triângulo amoroso.
Como acontece em muitos clássicos do século XIX, o papel e a representação das figuras femininas são incômodos em alguns momentos, mas no todo o romance é envolvente para quem gosta de uma história de amor cheia de sofrência. Embora eu faça parte desse grupo de leitoras (prova disso é que eu não conseguia parar de ler o livro!), minha motivação pra tirar este clássico da gaveta foi outra:
Camilo Castelo Branco escreveu "Amor de Perdição" enquanto estava preso numa cadeia na cidade do Porto, em Portugal, por ter se relacionado com uma mulher casada. O que se fala pouco é que a tal mulher também ficou presa no mesmo local e também ela escreveu um livro sobre o tempo em que esteve reclusa. Trata-se do livro "Luz Coada por Ferros", de Ana Plácido. Não é muito fácil encontrar exemplares das obras da autora, mas esses dias descobri que a Biblioteca Nacional de Portugal disponibiliza em seu acervo digital (em PDF e sem necessidade de login) o romance "Herança de Lágrimas", publicado por Ana Plácido anos depois de sair da prisão e que parece ter sido inspirado, em alguma medida, no adultério pelo qual ela foi condenada. Enfim, li "Amor de Perdição" porque, a partir dele, quero conhecer o olhar feminino dessa história toda, ter acesso à visão de uma escritora mulher sobre esse contexto histórico. Resumo da minha ópera literária: li Camilo para ler Ana Plácido, e como já foi bom ter pagado a minha dívida com esse clássico de Camilo!
Obs. sobre Turismo Literário: quem visitar a cidade do Porto pode ter acesso à prisão e, em específico, à cela em que Camilo escreveu o livro; hoje, o prédio é sede do Museu de Fotografia e a entrada é livre. E na minha opinião, o título que Ana Plácido deu ao seu romance descreve com perfeição a imagem que se vê num fim de tarde neste edifício: lá, a luz externa é, até hoje, coada por ferros. Ah, e ali bem pertinho, descendo um pouco a Rua Barbosa de Castro, fica a casa (recentemente destruída por um incêndio, mas com um letreiro resistente) onde nasceu Almeida Garrett. E para fechar o roteiro, é ainda possível, a partir dali, descer pro rio Douro pela rua da Restauração; à esquerda de quem desce, assim que surge o rio, estão as ruínas do Convento de Monchique, onde acontece uma das cenas icônicas do desfecho de Amor de Perdição. Não se trata de uma atração turística, então podemos vê-lo apenas por fora, e como o prédio está abandonado, o passeio acaba sendo até um pouco macabro (não vou me alongar mais aqui, mas o susto que eu tomei fazendo essa visita sozinha foi cena de conto de terror! rs).
E como literatura pouca é bobagem, dou mais uma referência literária: quem contornar as ruínas do Convento para chegar à sua entrada (macabra) vai acabar na Rua de Miragaia, rua/bairro mencionado no conto-crônica "Endereço Desconhecido", de Lygia Fagundes Telles. Eu fotografei esta rota e, se me vier inspiração/motivação, vou fazer um post no Instagram, mas achei que valia a pena deixar a sugestão aqui também!