Lucas 19/02/2018
Avante filhos da Pátria! O filho da Córsega chegou
Napoleão Bonaparte (1769-1821) foi, disparadamente, o grande personagem mundial do século XIX. A afirmação pode ser pomposa, mas é justa, como trás a biografia lançada em 1973 pela então recém-criada Editora Três. Num texto rápido, esclarecedor e cativante, organizado por Afonso Henriques de Guimarães Neto, o leitor adquire um grande conhecimento dos pormenores que cercavam esse personagem, que causa tanta controvérsia ainda hoje na Europa e especialmente na França.
Bonaparte era natural da Córsega, uma ilha situada no Mar Mediterrâneo entre a França e a Itália. O pai de Napoleão era um importante líder político da ilha, sendo representante da Córsega na Corte do então rei Luís XVI. Por estar próximo dos grandes centros (diga-se Paris) e dispondo de relativa influência, ele consegue encaminhar o seu segundo de oito filhos junto a academias militares da época. Este acontecimento marca a vida do então menino de 15 anos, retraído e voraz leitor de obras matemáticas, de história e de geografia.
A trajetória dele, no entanto, foi repleta de dificuldades íntimas e isso se manteve inclusive quando foi proclamado Imperador francês. Perdeu o pai muito cedo e, como o irmão mais velho morreu criança, caiu sobre Napoleão a responsabilidade de sustentar uma família com quase 10 integrantes. Teve que concluir seus estudos repentinamente e voltar à Córsega para reorganizar financeiramente a sua vida e a da sua prole. Com exceção da mãe, nunca teve um relacionamento próximo e de confiança plena com nenhum dos seus irmãos.
Além da questão militar, um fato muito importante de Napoleão e que acabou sendo decisivo para as suas ações era o grande preconceito que sofria na academia. Isso porque era advindo de um lugar irrelevante ao Império e também porque sofria muito pelo sotaque arrastado (a Córsega é muito próxima da Itália, tendo grande influência desta) e pela baixa estatura. Estes detalhes, inclusive, são insumos para que se criem dezenas de lendas a respeito de Bonaparte, muitas delas grotescas. Este preconceito muitas vezes explícito na qual sofreu é um determinante para a sua obsessão pela poder, que vai se acentuando ao longo dos anos; Napoleão sempre sentiu uma forte necessidade de mostrar-se a si mesmo como um vencedor, um herói do povo francês, amado pelos humildes e temido pelos altos burgueses.
O livro aborda bem todas essas questões, trazendo partes de diversos discursos que Bonaparte proferiu, seja ao povo ou ao exército. Percebe-se neles uma grande eloquência, que torna verdadeira a lenda de que ele era um grande orador. Também a obra prova a sua capacidade militar, de conhecer a geografia do campo de batalha e usá-la seu favor, o que, em consonância com vários outros fatores, foram decisivas para que o seu exército derrotasse inimigos mais poderosos, especialmente na Itália e no Egito entre 1797 e 1798, onde ele ganhou enorme prestígio junto à política francesa. Usando-se disso, Napoleão regressa a Paris e põe fim a diversas brigas políticas do pós-revolução, especialmente às relacionadas aos Jacobinos e Girondinos (cuja rivalidade, inclusive, criou os termos políticos de esquerda e direita, respectivamente).
Primeiro como Cônsul (1799-1804), depois como Imperador (1804-1815), Napoleão Bonaparte muito fez pela sociedade francesa. Criou o código civil da França, além de ter criado um código comercial e um código de processo penal, que influencia até hoje as legislações nacionais dessa natureza. Melhorou as condições de vida dos franceses e aproximou o meio urbano do rural. Sob o ponto de vista turístico, idealizou e iniciou a construção do Arco do Triunfo, em homenagem aos soldados mortos em combate nas chamadas Guerras Napoleônicas (no entanto, o monumento só foi concluído em 1836, 15 anos após a morte do seu principal idealizador). A sua volta cinematográfica ao poder em 1815, no chamado Governo dos Cem Dias, é um exemplo claro do clamor popular da qual dispunha.
Mas como todo personagem dessa grandeza, inúmeras controvérsias surgem em volta da sua biografia. A principal delas era o caráter obsessivamente bélico de suas ações. Napoleão não só fortaleceu sobremaneira o exército francês, mas expandiu suas fronteiras para limites inimagináveis: Áustria, Prússia, Suíça, Polônia, Itália, Espanha, Portugal... Tudo estava sob o domínio do novo Império Francês no auge do regime napoleônico. O que tornava tudo mais questionável ainda eram os seus discursos, permeados com termos como paz e unidade, e que a obra tão bem menciona e critica. Napoleão venceu inúmeras Coligações (reuniões entre monarquias tradicionais europeias que visavam derrubar o regime francês, a maior parte delas liderada pela Inglaterra, fonte eterna de ódio do biografado), mas o que acabou por miná-lo foi o seu forte desejo de domínio. O prenúncio da queda, como mencionado no livro, está na invasão à Península Ibérica (que provocou a fuga da Família Real Portuguesa para o Brasil em 1808). Depois, Bonaparte resolveu que seria provável que a Rússia seria conquistada e aí uma tragédia épica aconteceu: estima-se que de cada 100 soldados franceses que iniciaram a jornada apenas 18 retornaram à França (sempre recomendável a leitura de Guerra e Paz, de Liev Tosltoi, quando se menciona a respeito da Campanha da Rússia de 1812).
Em virtude dessa influência, a comparação com Adolf Hitler é comum. Tanto o líder alemão quanto Bonaparte tinham o conceito de conflito como solução correndo forte em suas veias. Despertaram o ódio de quase toda a Europa, foram responsáveis por milhões de mortes, foram massacrados pela Rússia e o seu inverno... Talvez traços próprios característicos os diferem: Bonaparte falava utopicamente em uma Europa única, Hitler defendia a supremacia alemã sobre seus vizinhos; Hitler era perseguidor dos "inimigos" (judeus e comunistas, por exemplo), já Bonaparte era dominador, sufocava seus adversários internos com táticas menos bélicas, mas que geravam o mesmo desfecho. Não é objetivo dessa resenha estabelecer uma comparação incisiva entre estes dois grandes personagens da história (até porque o livro resenhado não faz isso em nenhum momento), mas um aspecto diferencia decisivamente Bonaparte de Hitler: o contexto na qual cada um morreu. Enquanto Napoleão morreu exilado na pequena ilha de Santa Helena no meio do Atlântico, cercado por ingleses e com imensas dores provocadas por um provável câncer de estômago (talvez as mais antigas teorias de conspiração que existem são as que cercam as enfermidades de Napoleão), Hitler morreu cercado por inimigos de todos os lados e odiado por todos, inclusive pelo que restou do seu povo. A verdade é que Napoleão, que ficou exilado por seis anos, ainda gozava de certo prestígio, tímido, em seu país, mas que se intensificou com as condições de sua morte. Já Hitler levou a sua pátria a um desastre de proporções épicas, que repercutirão eternamente. A prova mais cabal dessa diferença é que, por mais que Napoleão seja tratado com certa indiferença na França atual, seu corpo repousa num museu militar, o Hôtel des Invalides, ao passo que o destino dos restos mortais de Hitler é totalmente desconhecido. Mas em termos de influência sobre a Europa, cada um em seu século, ambos possuem algumas similaridades.
Seja bélico ou não, amigo do povo ou inimigo da nobreza, a obra contribui para que se entendam as múltiplas faces de Napoleão Bonaparte, que, acima de tudo, sempre desejou ver a sua França em posição de destaque. O passar dos séculos deve lembrar da sua eloquência, dos seus ideais patrióticos mas também deve guardar a sua responsabilidade em guerras evitáveis. Sua ousadia bateu de frente com as seculares monarquias europeias (muitas das quais não existem mais hoje) e esse confronto resultou em milhões de mortes. Mas este mesmo passar dos séculos não conseguirá chegar a uma conclusão definitiva a respeito do caráter de Bonaparte. O que a história, atual e futura, deve fazer é estudá-lo, sem se ater a compreendê-lo.