lucasfrk 01/10/2022
Os Lusíadas ? Resenha
?Fui tão afeiçoado à minha pátria que não me contentei de morrer nela, mas com ela.?
Assim Luís Vaz de Camões, o primeiro poeta português e um dos maiores da civilização moderna, em seu último e derradeiro escrito, rege a carta ao amigo D. Francisco de Almeida no leito de morte. Esta passagem está intimamente ligada à batalha de Alcácer Quibir, no litoral do Marrocos, uma expedição militar e imperial lusitana contra os mouros, que constantemente penetravam as possessões portuguesas na região. O resultado foi desastroso, causando a derrota das forças portuguesas e o desaparecimento do corpo do rei, D. Sebastião, o que daria origem ao mito do ?sebastianismo?.
Não tendo herdeiros ao trono, o cardeal D. Henrique, com a saúde debilitada, assumiu o reino até sua morte, em meados de 1580. Assim, a dinastia de Avis, que reinava Portugal desde o século XIV e controlava todo o processo de expansão marítima, ficara sem herdeiros. Com o trono vazio, o rei da Espanha ? tio D. Sebastião ?, Filipe II, unificou as duas coroas, dando origem à União Ibérica, situação que se prolongaria até 1640. Vitimado pela peste, Camões falecera, em Lisboa, em junho de 1580. Em sua última carta, portanto, não só morria na pátria, mas junto com a ela.
Certamente um grande propulsor do evento foi Camões, influenciando, com a publicação de sua magnus opus, o rei e toda a aristocracia portuguesa. Mais de um milênio após Virgílio ter escrito a Eneida, Camões decide que os portugueses também precisavam de uma epopeia para se legitimarem. Os Lusíadas, o maior dos épicos nacionais, é uma saga do Humanismo. É a primeira grande epopeia cristã da modernidade, assim como a Divina Comédia fora no medievo. Escrito durante o Renascimento em Portugal, numa época marcada pelas Cruzadas; pelas Grandes Navegações; pelas invenções; pela imprensa de Gutemberg, bem como o consequente barateamento do papel; pelas controvérsias religiosas, como a Contrarreforma; período iniciado na Itália, cujo desejo de conhecer a si próprio calcava-se na reafirmação do espírito humano. Fora um contexto de revolução cultural, que contrapõe a cultura clerical, tendo como base o humanismo frente ao teocentrismo; tendo, também, como opção estética, o classicismo.
A cultura da Antiguidade greco-latina, voltada aos princípios clássicos de harmonia, equilíbrio e visão antropocentrista do mundo, é ressuscitada. No período, dois mundos são descobertos pelos humanistas: o mundo clássico e o mundo terrestre. Em Portugal, Sá de Miranda e Camões fazem a síntese entre a tradição literária portuguesa e as novas inovações. Com o resgate do gênero épico e inspirado nas obras homéricas e virgilianas ? que narravam as conquistas e as glórias do povo grego e romano, respectivamente ?, Camões narra as conquistas do povo português na época das Navegações.
A saga narra os portugueses na viagem do navegador português Vasco da Gama (1469-1524) em busca da rota marítima para a Índia ? um marco nas relações comerciais e exploratórias do século XV e, de certa forma, a consolidação de um momento historicamente relevante para Portugal ?, bem como todos os incidentes que a cercam. O texto divide-se em dez cantos, compostos por versos decassílabos, e em cinco partes: proposição (onde narram-se os feitos portugueses), invocação (das ninfas do Tejo), ofertório (do rei D. Sebastião), narração e epílogo. Marcado pelo sentimento heroico de expansão portuguesa e pelo ecletismo religioso, Camões confere ao texto uma dimensão coletiva do herói, não sendo, ele, Vasco da Gama, mas sim o povo português. Canta-se, portanto, a pátria e a história de Portugal. A viagem de expansão marítima torna-se pretexto para que a história de Portugal seja cantada ? a viagem é, em última instância, uma narrativa-moldura. É uma história que começa in medias res (isto é, parte do meio da ação para então inserir todos os acontecimentos), iniciando no meio da viagem de Gama. A história de Portugal é contada cronologicamente pelo capitão ao rei de Melinde. A viagem é usada como representação de todas as navegações portuguesas, que ilustram uma época e demonstram a incapacidade do europeu (mais especificamente do português), de sair de si para identificar-se com o Outro.
Camões, no concílio dos Deuses, coloca os portugueses como descendentes dos romanos, e, portanto, herdeiros do apoio de Cípris, estando, assim, predestinados a construir um grande império. Apesar de se apoiar em heróis de carne e osso como Vasco da Gama e citar reis e autoridades reais do período, Camões igualmente apela para o maravilhoso, para a intervenção dos deuses. Nesse sentido, a realidade é mitificada, enxergada por uma lente grega homérica, o que simbolicamente é uma forma de ligar o Império Português a esse paradigma de civilização e poder que é a epopeia grega.
No poema é clarividente um europeu impermeável à cultura do Oriente, incapaz de compreendê-la. Camões faz uma análise ideológica (do aristocratismo social) e uma investigação lírico-mitológica, traçando ?linhas épicas sustentadas por fatores líricos?. A lei que preside o mundo mitológico camoniano é a beleza. Faz-se uma imersão ao mundo pagão, trazendo um poder erótico e uma força lírica considerável em meio à crise religiosa. A glorificação do corpo e o desafio ao espírito reformista faz do texto uma valorização da razão e das conquistas humanas ? embora exista, ainda, uma preocupação demasiada por parte do autor em dizer a ?verdade? sobre os fatos narrados. Pode-se ler a obra em quatro planos: o histórico, o mítico, o heroico e o pessoal. Narra-se a história de um país, em que, enquanto deuses pagãos são utilizados como recurso estético, há uma mistificação daquelas figuras dos navegadores ? invocados como ?novos argonautas? ?, estes cada vez mais aproximados do período histórico do próprio autor.
A construção magistral e sobretudo repetitiva, como toda epopeia. A extração dos grandes feitos portugueses é feita enquanto se rememora marcantes episódios constitutivos da nação portuguesa, como o episódio da Inês de Castro, do Gigante Adamastor, do Velho do Restelo, da Ilha dos Amores e da Máquina do Mundo.
A presente edição de Os Lusíadas, organizada pela especialista em Literatura Portuguesa Jane Tutikian, está voltada para estudantes e para interessados em ler esse cânone da literatura. A obra-prima de Camões é bem acompanhada de uma apresentação que contextualiza pertinazmente o surgimento do texto e a vida do autor além de abundantes ? embora por vezes excessivamente repetitivas ? notas que esclarecem vocabulário, referências a personagens e fatos históricos, bem como auxiliam na compreensão de trechos cuja sintaxe pode dificultar a leitura.
Em última análise, Os Lusíadas é uma obra monumental, basilar da cultura e da literatura portuguesa, que repercute no bojo da rica cultura de rico idioma, progênie do latim romano de Virgílio, espelhado na mística de Camões. Fernando Pessoa (em ?Mensagem?), José Saramago (em ?A jangada de pedra?), Carlos Drummond de Andrade (em ?A máquina do mundo?) e Manuel Bandeira (em ?A Camões?) citam, direta ou indiretamente, o texto camoniano. É evidente, no entanto, que o poema não é unânime. A postura soberba e saudosista que Camões impregna no texto desvela as contradições do próprio poeta, distanciado espaço-temporalmente da pátria que tanto glorifica ? mas não dos homens que critica. Esse ato de mitificação ainda assim torna-se relevante na dimensão do resgate da epopeia clássica de Homero. Ao mesmo tempo em que glorifica as ações imperialistas dos lusitanos, Camões canta uma denúncia da opressão em nome do heroísmo e da ambição pela conquista. O elemento social do poema acaba destoando-se da Odisseia, por exemplo ? onde Homero canta em louvor de um homem. Camões aproxima-se, com esse viés coletivo, dialético e histórico, de Virgílio, na formação de um povo, cercado de contradições, revoluções e de um eterno movimento em direção a uma expurgação do corpo material.