Otávio Augusto 09/01/2024Há mais burocracia entre o homem e a lei do que a vã justiça dos homens possa conceberMinhas primeiras experiências com a obra kafkiana não foram muito boas. Tive que ler duas vezes A metamorfose, Na colônia penal e O processo para gostar – e muito – dessas obras. O processo, então, foi o livro que mais cresceu ao ser relido. Percebi muitos detalhes que, na primeira leitura, foram invisíveis, mas que agora me proporcionaram uma experiência bem mais profunda. Ainda assim, tenho algumas críticas ao livro. Comentarei todo o enredo do romance, bem como minha visão sobre ele.
Josef K., um bancário de trinta anos, é detido na primeira cena do romance por dois oficiais de justiça; K. não sabe o motivo da detenção nem o que deve fazer para se defender. A partir disso, acompanharemos o protagonista por nove capítulos em sua busca pela justiça. Será uma odisseia em busca da justiça pessoal.
Logo após ser detido, K. vai ao tribunal fazer sua própria defesa. Porém, antes que ele comece a depor, Kafka já nos insere numa atmosfera claustrofóbica, pois o tribunal tem um teto baixo que força as pessoas a ficarem curvadas, e a chancelaria jurídica se mostra um longo corredor lotado por pessoas que aguardam a solução do seu caso há décadas, como almas mortas esperando seu julgamento.
Ademais, o tribunal, ambiente que deveria representar a lei e a justiça, na verdade é um antro de imoralidade e perversidade. K. logo encontra revistas pornográficas escondidas que prenunciam a vileza do que lá ocorre: uma mulher que, por ser esposa de um servente do tribunal, é reduzida a objeto sexual do juiz do tribunal e de um sujeito denominado por “estudante”. Ela já nos revela como o ambiente jurídico funciona – apenas mediante favorecimentos pessoais, nunca mediante a lei.
Em outro momento, veremos K. tentar se reunir com o advogado designado para defendê-lo. Porém, este já se encontra acamado e logo se mostra um verdadeiro enganador. O advogado chega a dizer que os “grandes advogados” não passam de lendas, pois são pessoas que defendem apenas quem escolherem defender, pessoas cujas causas lhe serão mais lucrativas. Fica claro que ele e sua cuidadora são membros do próprio tribunal e que nada têm a ajudar K.., apenas estão vigiando-o. A cuidadora do advogado, assim como a esposa do servente do tribunal, se insinua libidinosamente a K., o que interpreto como a degradação máxima de um indivíduo por parte de uma instituição – o poder judiciário.
Já nas páginas finais do romance, chegamos ao ápice da narrativa, o capítulo que sintetiza o romance, intitulado “Na catedral”. K., como bancário, é encarregado de apresentar a catedral para um possível cliente, mas, ao chegar no horário marcado encontra o ambiente vazio; apenas um sacristão próximo ao púlpito lhe faz companhia. O sacristão então passa a narrar um escrito introdutório das Leis. Segundo o escrito, diante da Lei está um porteiro. Um Homem do campo quer ultrapassar a porta e alcançar a Lei, mas seu avanço é impedido por um Porteiro que lhe proíbe a entrada e alerta que “Eu sou poderoso. E sou apenas o Porteiro mais inferior. De sala em sala porém estão porteiros um mais poderoso que o outro. Já a visão do terceiro não consigo sequer suportar”. O tempo passa e o Homem continua sem avançar; o porteiro chega a lhe oferecer um tamborete para que se sente e aguarda calmamente. O Homem tenta subornar o Porteiro, mas este lhe responde que aceitará o suborno apenas para que o Homem entenda que fez tudo o que podia. Os anos se passam, o Homem envelhece e se aproxima da morte, sem jamais ver poder ingressar.
K. contesta a narrativa, afirmando que O Homem foi enganado pelo Porteiro, mas o sacristão fornece a chave interpretativa para o romance. Na parábola, ao contrário do que podemos pensar, o Homem não é uma vítima do Porteiro. Na verdade, a Lei também não se revela inteiramente ao Porteiro. Assim como os outros porteiros citados, ele é apenas um servente da justiça que não possui outra opção além de fazer o que a Lei preceitua, e seu dever é cumprido fielmente, não cessando tampouco com um suborno. Se o ingresso d’O homem à Lei não é permitido, trata-se de uma consequência da vontade arbitrária de autoridades muito superiores ao Porteiro e ao próprio Josef K. Também vale ressaltar que O Homem jamais foi enganado pelo Porteiro, que não lhe mentiu em momento algum e sempre esteve “à sua disposição”, aguardando o momento permitido para liberá-lo à Lei. Somando-se essa interpretação ao fato do sacristão se denominar um membro do tribunal, fica claro que o tribunal possui uma vigilância asfixiante. Todas as pessoas que K. encontrou ao longo da narrativa possuíam alguma conexão com o tribunal; não há uma única cena no romance em que o poder judiciário, implicitamente, não impere por meio de sua ubiquidade orwelliana. A mesma entidade que vigia todos os passos de Josef K. é também a responsável pela sua execução imotivada ao final do romance.
A substância do romance é poderosa a ponto de causar reações físicas no leitor, que se sente asfixiado – como K. – nessa odisseia da burocracia. Kafka consegue causar esse efeito usando parágrafos imensos que tomam nosso fôlego ao longo das várias páginas, assim como os labirintos hostis e herméticos no caminho da justiça tomam o fôlego de Josef K. É um livro incômodo, mas um incômodo que pode nos causar um arrebatamento estético.
Entretanto, percebe-se o caráter inacabado do livro. Apesar do livro ser muito satisfatório, alguns capítulos terminam de forma repentina, o que é consequência da falta de uma revisão final ou de uma reescritura. Também é possível trocar a ordem de alguns capítulos de maneira quase aleatória, não havendo uma ordem temporal bem definida narrativamente entre eles. Por fim, o próprio personagem K. soa como muito genérico e apático, carece de um maior desenvolvimento e profundidade. Não temos acesso a quem são seus amigos, familiares, estilo de vida, conflitos internos – falta psiquismo no personagem. Talvez seja proposital essa falta de voz do protagonista, que pode ser vista como um mero detalhe irrelevante ao enredo.
O processo nos exemplifica o que é um clássico. É O tipo de livro insere na humanidade o significado do adjetivo “kafkiano”, que nos remete a um surrealismo oriundo da fusão de uma burocracia inexorável com o absurdo. Contraditoriamente, esse surrealismo está presente em nossas vidas, como bem percebeu Kafka.