Andreia Santana 28/08/2010
O fogo da vida que queima no mar das ideias
Haroun e o mar de histórias é uma metáfora escrita por Salman Rushdie em 1990, como forma de explicar ao seu filho o que significou para ele a Fatwa (sentença em que o aiatolá Khomeini pedia a morte do autor por blasfemar contra o Islã em seu livro mais famoso, Os versos satânicos, e que resultou em censura da obra e uma imposição de silêncio a Rushdie). Vinte anos depois de não apenas dar uma aula sobre liberdade de expressão ao filho, mas revolucionar a própria forma de escrever para crianças, o escritor está de volta com a continuação da história, Luka e o fogo da vida, lançado recentemente no Brasil pela Companhia das Letras e divulgado em primeira mão no país, pelo próprio autor, na FLIP 2010 (Festa Literária Internacional de Paraty).
Ambientado em um intervalo de tempo de 18 anos após a primeira história, Luka e o fogo da vida resgata o tema da liberdade de expressão, mas desta vez, com o autor livre da Fatwa (embora extremistas islâmicos ainda ameacem o escritor), o foco é o politicamente correto dos tempos pós-contemporâneos. Luka, o personagem-título da continuação, é o irmão mais novo e temporão de Haroun, agora um homem de 30 anos, e personagem principal da obra anterior. Ler uma sem ler a outra é perder o contexto sobre o qual Salman Rushdie tece a sua teoria sobre a origem do hábito humano de contar histórias e criar mitos para explicar o inexplicável: de onde viemos e quem somos nós?
Reconhecido internacionalmente pela mistura de ficção - bebe com frequência em antigos mitos hindus -, com a realidade e o conflito de ideias e modos de vida entre Oriente e Ocidente (Rushdie é um britânico de origem indiana, criado em Mumbai), o autor não é dos mais fáceis de ser lido nos seus livros para adultos, pois subverte a lógica linear da narrativa a que muitos leitores estão habituados e constroi tramas tão intrincadas que é fácil se perder no labirinto do presente, passado e futuro, realidade ou fantasia. Mas a complexidade do escritor, quando transposta para o universo infanto-juvenil, faz todo o sentido aos apreciadores da literatura, em qualquer idade.
Mesmo quem nunca leu uma das obras adultas de Rushdie, como a tríade magistral formada por,Os versos satânicos, O chão que ela pisa e O último suspiro do mouro, encontrará facilidade em embarcar nas aventuras de Haroun ou na de seu irmão Luka.
Embora filosofe sobre o mesmo tema e mantenha o tom de declaração de amor aos mitos criados pela humanidade ao longo dos milênios para se autoexplicar, Salman Rushdie mostra em Luka que continua sendo um intelectual conectado ao presente e que está mais do que plugado aos novos tempos e à exigência dos leitores de vinte anos depois do primeiro livro. Se Haroun traz uma certa nostalgia de fogueiras e rodas de contação de histórias ao luar, fazendo os pais suspirarem pelas suas infâncias deixadas para trás, no limbo da memória, Luka é um fôlego novo, ágil e totalmente em ritmo de videogame. Aliás, a aventura do garoto em busca do fogo da vida que pode salvar o mundo real e o da fantasia de uma destruição iminente, é toda narrada em níveis e fases, como os jogos que a turma de agora costuma encarar no computador. Luka, inclusive, precisa lembrar-se de salvar cada conquista ao pular de um nível ao outro, além de perder ou ganhar vidas conforme avança nas jogadas, como num grande game.
A influência da cultura pop na obra de Rushdie não é novidade, mas a forma como ele encaixa essas referências em suas obras, fazendo um casamento perfeito entre a modernidade e a tradição, é característica do estilo de sua narrativa, que oscila entre a pura poesia e a capacidade de dizer verdades inconvenientes e amargas com a força de um soco no estômago e a doçura de uma canção. Em Luka, essa verdade incômoda é a morte que ronda o pai do personagem, o grande Mar das Ideias, ou Xá do Blá Blá Blá, Rashid Khalifa, o maior contador de histórias do imaginário país de Alefbay, onde se desenvolve a trama.
Enfeitiçado pelos Aalins (os senhores que controlam o tempo), Rashid precisa comer um pouco do fogo da vida para recuperar-se. Caso Luka fracasse na sua aventura, será o fim do mundo de fantasia criado por seu pai e as consequências chegarão até a realidade fora dos livros, com o comprometimento de todas as histórias conhecidas pela humanidade. E aqui, Rushdie nos brinda com a teoria de que não somos nada mais, nada menos do que palavras, “um oceano de conceitos” traduzido e tornado real a partir do ato de recebermos um nome ao nascer ou de nomearmos cada coisa no ambiente que nos cerca.
Qualquer semelhança com “e o verbo se fez carne” bíblico, não é mera coincidência. Até porque, boa parte do que está na bíblia cristã (no novo testamento, principalmente) já se encontrava nos Vedas indianos séculos antes de Cristo.
Na sua jornada, Luka tem como companhia um urso e um cachorro falantes e o fantasma da morte que absorve a vida de Rashid e a quem o menino chama de Ninguémpai. Seu conhecimento do mundo mágico do Xá do Blá Blá Blá é todo teórico, baseado nos relatos de Rashid e na aventura vivida por seu irmão Haroun 18 anos antes. Uma vez que atravessa a fronteira, sai da realidade e entra no mundo da ficção, Luka se depara com uma jornada típica do reino de Oz, onde não faltam cidades e personagens exóticos e uma espécie de retiro para deuses aposentados (aqueles que deixaram de ser cultuados pela humanidade), onde convivem às turras divindades do Egito, Pérsia, Grécia, Roma, das Américas, países nórdicos e orixás africanos.
O interessante a observar é que o personagem é canhoto e, sentindo-se inadequado em um mundo planejado para quem vive à direita (ou seja, os destros), sonha com um país ao contrário, uma espécie de eldorado dos canhotos, onde o esquerdo é que assume o status de correto. Uma advertência de seu irmão Haroun, “cuidado ao pegar a senda da esquerda”, é figura de linguagem perfeita para criticar o radicalismo de certos movimentos políticos e sociais.
Usando os Aalins como a grande metáfora para a censura que tenta impedir o fluxo do mar de histórias de jorrar, Salman Rushdie analisa o mundo atual e chega á conclusão de que a patrulha ideológica do politicamente correto e as imposições de regimes políticos totalitários (de esquerda e direita) que readquiriram força neste começo de século XXI (principalmente no Oriente), são os grandes responsáveis por automatizar ações e sentimentos, desumanizando as pessoas e tornando-as espectros, como o Ninguémpai. O contraponto aos rígidos senhores do tempo é a Insultana de Ontt, personagem feminina de destaque na trama e no desfecho da jornada de Luka. Rainha de uma terra de livre expressão, a Insultana lança mão do humor e do deboche como armas contra qualquer forma de tirania.
Com este pequeno libelo à liberdade, são 208 páginas, o autor quer ainda ensinar aos mais novos e relembrar aos mais velhos que o humor também é um santo remédio para os males do tempo. Parece um conselho pueril, mas quem tenta rir de si mesmo até nas situações mais críticas, vai entender...
===========================
P.S.: A reportagem acima foi originalmente escrita e publicada em 28/08/2010, no Caderno 2+, suplemento cultural do jornal A TARDE, em Salvador, onde sou colaboradora.