Paulo 11/08/2020
1 - "A Peônia", de Alec Silva (3 estrelas)
A proposta da coletânea é nos apresentar histórias baseadas no formato clássico pulp de espada e feitiçaria. Claro que esse é só o ponto de partida, com os autores podendo reimaginar seus personagens de acordo com suas ideias. E Alec Silva pega o clichê do guerreiro poderoso que segue de vila em vila coletando recompensas e dá um twist. Ele nos apresenta Marja, uma guerreira forjada sob um terrível treinamento e agora sai pelo mundo em missões perigosas. E a gente vê que com ela não se pode brincar, caso contrário, poderá acabar no fio de sua espada.
A narrativa pode ser dividida em duas metades: na primeira, temos um grupo de aldeões comentando sobre a lenda da Peônia e o quanto o seu nome deve ser temida. Ou seja, o autor alimenta a reputação da personagem ao criar histórias e lendas a seu respeito. Na segunda parte, Marja chega com o butim de uma aventura em busca de uma recompensa. Mas, talvez as pessoas que colocaram a recompensa irão ter outros planos. E Marja não gosta muito de ser enrolada. Podemos dizer que a história é bem direta e objetiva e o autor consegue criar essa atmosfera de grandeza ao redor da protagonista. Só que eu senti que faltou espaço para trabalhar melhor a própria construção dela.
Os limites impostos pela estrutura do conto prejudicaram os planos do autor. Eu gostei da narrativa, mas senti que faltou algo. Depois parando para reler e refletir melhor, percebi que o que faltava era justificar toda essa aura criada ao redor da personagem. Não houve tempo para que eu pudesse entender o quanto a guerreira é temida. Fico em dúvida se ter usado algumas páginas para contar a lenda da personagem ajudou ou prejudicou o fluxo da narrativa. Porque se formos pensar de forma direta, a narrativa mesmo só acontece quando Marja está adentrando nos portões da mansão. E já tinham-se passado várias páginas antes.
2 - "Khamir, o Sem Rosto" . de Lucas Viapiana Baptista (4 estrelas)
Nesta narrativa, o autor nos apresenta um personagem que parece ter sido afetado por uma maldição que o deixou desfigurado. Ele é um guerreiro poderoso que vaga pelo reino buscando alguma maneira de destruir sua maldição. É quando ele recebe uma visão de que deve seguir rumo a um local de poder. Ao chegar lá ele precisará superar um desafio mortal que irá testar a sua força de vontade e o quanto ele está disposto a abandoná-la em prol do seu objetivo final.
A narrativa é redondinha e nos apresenta um personagem com algum tipo de obstáculo a ser superado. Gostei o quanto a maldição ajuda a compor a personalidade ele. Ela não está ali para tolher o personagem ou para ser erradicada; ela faz parte dele e de como é o seu processo decisório. A abordagem do autor é mais direta e parece até como se fosse uma aventura ou um mais um dia em sua vida. Claro que a aventura vai apontar em direção a uma situação marcante que vai, de alguma forma, deixar marcas em seu espírito. O autor acabou tendo a difícil escolha de focar sua escrita no personagem em detrimento de explicitar mais como é o mundo em que ele vive. Temos algumas referências aqui ou ali mas para o leitor essas referências acabam não dizendo nada. Em um conto ou a gente se foca no personagem ou no mundo; por mais que o autor busque equilibrar as duas coisas, isso acaba não sendo possível. No fim das contas eu acabei curtindo bastante a história e gostaria de ver mais sobre Khamir.
3 - "O lorde sombrio do castelo em ruínas", de Tarcísio Lucas Hernandes Pereira (5 estrelas)
Adoro personagens com personalidade. Sério... Em um gênero como espada e feitiçaria é complicado sair dos clichês típicos dos personagens tradicionais: o guerreiro poderoso, o cavaleiro amaldiçoado, a mulher badass. E o Tarcísio cria um personagem bem interessante; um ladrão que tem seus objetivos, cauteloso, mas que acaba se envolvendo em algo que ele sabe ser maior do que ele. Aqui não temos um personagem destemido; estamos diante de um homem que mede suas ações e está o tempo todo planejando seu próximo passo. Mas, as circunstâncias acabam colocando-o nas mãos de um poder além de sua imaginação.
Alkar é um ladrão em busca de seu próximo alvo. Um tesouro escondido, uma caverna com riquezas além da imaginação, a mansão de um homem rico. Dessa vez o alvo são as ruínas do castelo de lorde Zamiel. Então ele segue confiante rumo ao seu objetivo e ao chegar lá ele percebe que forças sinistras habitam o lugar. Ele se prepara para fazer um roubo rápido e sair dali o quanto antes. Mas, a presença do próprio lorde Zamiel o espanta de uma forma sinistra. Ou pelo menos ele julga ser o nobre. Ou alguma coisa que se assemelha a ele.
Um dos pontos altos da narrativa é o embate de inteligência entre os dois personagens. Os diálogos são sagazes e dinâmicos. Tanto protagonista e antagonista possuem motivações que interessam o leitor. Eu me senti investido naquela história e queria saber como ela iria terminar. Apesar de ser uma narrativa mais alongada, a narrativa flui bem e as descrições não são cansativas; muito pelo contrário. Outro ponto bom é que essa história é a definição perfeita do conto: se encerra em si mesmo, com uma narrativa que tem início, meio e fim. Não há pontas soltas e não quero saber mais desses personagens. Tudo se encerra ali de uma forma bastante satisfatória.
4 - "A Última Luz", de Jonatas Tosta Barbosa (4 estrelas)
A Última Luz é uma história poderosa que fala de manter a esperança mesmo na mais sombria das situações. Estamos em um mundo abandonado pelos deuses onde os seres humanos precisam sobreviver em um lugar frio e escuro. Animais selvagens e lendários se tornaram ainda mais mortais e o grupo da protagonista Ardruna precisa atravessar um cenário duro para encontrar um lugar onde talvez as coisas possam ser melhores. Nessa caminhada, muitos ficarão pelo caminho já que uma criatura chamada Beórum parece ter feito esse grupo de alvo. A narrativa começa quando o pai de Ardruna, já esgotado pela caminhada mortal, se torna um peso para o grupo que quer a todo custo abandoná-lo.
Eu gostei dessa narrativa não por ela ser um exemplo de espada e feitiçaria, mas justamente pelo contrário. Das histórias que eu li é uma das que menos tem a ver com o gênero. Não sei por que, mas ela me fez lembrar muito da narrativa de Cormac McCarthy em A Estrada. Aquela narrativa seca e cruel onde o autor não alivia nas suas descrições. O mundo de suas histórias é cruel e selvagem e somos apenas uma vítima de suas intempéries. Claro que existe uma criatura que persegue o grupo, mas o próprio ambiente em si forja os homens em um molde mais duro. As escolhas feitas tem a ver com sobreviver mais um dia. Não posso tirar o valor da história, mas também não consigo encaixá-la como um pulp, menos ainda como espada e feitiçaria.
5 - "A Caçada ao Paladino", de Fernando Fiorin (3 estrelas)
Com uma temática que coloca duas culturas diferentes lado a lado em uma busca por uma criatura demoníaca, Fernando tem junto de si algo com muito potencial para ser explorado. A narrativa explora bastante as concepções e pensamentos do protagonista, Sir Richard que acaba precisando se ver envolvido com um mouro para caçar uma criatura cruel que teria amaldiçoado sua família. O que começa como uma aliança de necessidade, com o protagonista se questionando sobre os motivos que o levaram a uma atitude tola, em sua opinião, se transforma em uma verdadeira amizade e uma relação de respeito.
Esta é uma narrativa bem direta onde os personagens buscam pistas do paradeiro de um objeto mágico que seria responsável por conter os poderes desta criatura. Então quase sempre estamos seguindo de um ponto A para um ponto B, com algum problema acontecendo que faz com que o personagem acabe indo para outra direção. O ponto alto realmente é ver a quebra de paradigmas de Sir Richard diante de seu aliado. O choque cultural é bem explorado pelo autor. Mas, eu acabei sentindo falta de um momento climático na narrativa. O que acontece mais para a frente é mais decepcionante do que interessante. Senti que faltou aquele momento do combate onde as diferenças são deixadas de lado ou então o protagonista acaba se unindo em pensamento com seu aliado. Tudo foi resolvido de uma forma muito rápida, mais como algo a ser finalizado do que uma missão que encaminhou toda a narrativa.
6 - "A Bruxa", de Marina Mainardi (3 estrelas)
A proposta de reinventar está espalhada por toda essa coletânea. Reimaginar clichês, narrativas, tipos de personagem. E aqui está mais uma narrativa nesse tipo. Pegar o conceito de bruxa e inseri-lo em outro contexto. O resultado final ficou um pouco na metade daquilo que eu esperava. Mesmo assim, o conto te instiga a permanecer vidrado nas páginas até o final. Temos um cavaleiro errante que chega até uma vila que é assolada por uma bruxa. Todos os anos ela pede um sacrifício que precisa ser feito em seu nome. O cavaleiro estranha um pouco o cenário, diferente de outros lugares onde ele realizara jornadas anteriores. Embora jovem, ele parece ser experiente e segue explorando a floresta que cerca o esconderijo da bruxa. E talvez essa mudança na dinâmica das coisas pode levá-lo a uma armadilha mortal.
Essa é uma narrativa bem direta que não adentra muito em temáticas. É bem nessa pegada pulp. Posso dizer que a autora tentou mostrar o seu cenário de uma forma descritiva partindo das diferenças brutais sentidas pelos personagens: os deuses mais voltados para a natureza, os costumes mais "rudimentares" ao invés de uma cultura mais urbana, os templos estranhos. Esse momento narrativo me agradou bastante e mostrou que a autora consegue ir bem na descrição sem ser algo chato ou desinteressante. O problema ficou na segunda metade quando acontece o clímax da história. Não digo que precisaria haver um duelo ou algo do tipo, mas fiquei um pouco decepcionado com esse momento (não com a solução final que é bem legal). Achei que a narrativa seguia muito bem até o confronto final quando as minhas expectativas foram derrubadas.
7 - "Enseada Abissal", de Rodrigo B. Scop (2 estrelas)
Acho que já passou na cabeça de muitos autores como ressignificar a narrativa de Moby Dick em outro gênero narrativo. Seja em uma ficção científica ou talvez em um cenário fantástico. Está na cara que é esse o tema por trás da perseguição de Neshad a uma poderosa criatura marinha. Seu desejo por vingança é o que move suas ações. Ele quer ter o prazer de destruir essa criatura maldita que assola os mares há muitos anos. Neshad treinou para isso e precisou até mesmo engolir o seu orgulho em prol de reunir um grupo de especialistas para poder iniciar uma caçada na enseada abissal. Mas, ele quer dar o golpe final a todo o custo. E, sabendo que essa aventura é perigosa, ele guia uma frota com magos e capitães experientes em direção ao lugar. Essa obsessão levará a momentos dramáticos que serão transpostos para as linhas pelo autor.
Olha, a temática de Moby Dick exige que o leitor se engaje no drama do protagonista. O confronto entre caça e caçador precisa ser algo épico para que a narrativa consiga produzir o efeito desejado. E em nenhum momento eu comprei o drama, a obsessão de Neshad pela caça do monstro. Isso precisava ser desenvolvido em mais páginas, trabalhando o quanto a criatura afetou a vida do personagem: seja como um drama pessoal, envolvendo uma vingança ou seja como um mote de vida em que o personagem entende que derrotar a criatura seja sua missão de vida. Por eu não me interessar pelo drama, isso acabou afetando a minha leitura. Porém, preciso dizer que o autor foi muito competente ao criar a cena do confronto com a criatura. Se no conto anterior eu reclamei da falta de clímax, aqui somos brindados com cenas épicas com magias sendo empregadas, navios sendo destruídos. A cena toda tem um bom efeito de condução de uma narrativa de ação com os momento sendo bem verossímeis em uma narrativa de fantasia.
8 - "Considerações acerca de Anathemus a espada perdida", de Roberto Fideli (5 estrelas)
Genial. Só isso que eu tenho a dizer nessa primeira frase. São contos como o do Fideli que me fazem curtir demais o formato de histórias curtas. Quando você consegue criar histórias criativas ou experimentar maneiras diferentes de se contar uma história, é sinal de alta criatividade e imaginação. Vejo muita gente desconsiderando ou relegando a segundo plano esse tipo de narrativas. Uma das melhores maneiras para treinar a pena é escrevendo histórias curtas, não canso de repetir isso.
A proposta é muito simples e não menos criativa: uma escrita acadêmica sobre uma arma mágica. Somos guiados por várias páginas em um profundo estudo sobre a histórias, os poderes e o destino de uma poderosa espada, que diz fornecer poderes inimagináveis ao seu possuidor. O autor explora as personalidades que tiveram a arma em suas mãos, testemunhas que viram o poder real em funcionamento e hipóteses sobre os poderes e a origem do forjador da arma. Fideli criou um artigo científico sobre uma arma mágica!!! Com direito a formato ABNT! E bibliografia no final... Meus olhos brilharam lendo o artigo. A criatividade e a imaginação para criar algo assim. Pode até ser que para vocês, leitores, seja mais um conto dentro da coletânea. Para mim é O Conto. Só tenho que dar palmas lentas para isso. Criativo, ousado e diferente. E o melhor: ele escreve de uma maneira que é legal. Não chega a ser chato ou enfadonho.
9 - "Nas Ruínas de Ka'Drath", de João Ricardo Bittencourt (3 estrelas)
Sou muito suspeito para falar de narrativas que se inspirem no estilo lovecraftiano de escrever. Não curto Lovecraft e isso de certa forma acaba sendo transmitido para a maneira como eu observo narrativas derivadas. Este é mais um caso. O autor claramente tem uma pegada nesse estilo e eu acabei não curtindo a história desde o começo. Mas, ela não deixa de ter suas qualidades: uma escrita bem polida, uma boa habilidade descritiva e uma noção de tempo narrativo, o que faltou em algumas histórias nesta coletânea. Ou seja, o autor soube dosar bem introdução, desenvolvimento e conclusão.
A protagonista é uma bruxa capaz de empregar dons necromânticos para lhe auxiliar em sua jornada. Ela busca adentrar nas ruínas de Ka'Drath, uma poderosa criatura que é venerada por aqueles que desejam obter os segredos da vida e da morte. Ou seja, é o lugar perfeito para esconder um tomo misterioso contendo tais segredos. Ao longo do caminho, a bruxa vai se deparar com uma tribo de aborígenes que farão de tudo para impedir sua passagem, mas acabarão se tornando parte de sua jornada através de seus poderes mágicos.
A narrativa vai em um aspecto da aventura e da superação de obstáculos ao mesmo tempo em que se foca nas motivações que levam-na a este local. O problema é que eu não consegui entrar na história ou comprar as motivações da protagonista. Acabou sendo mais um conto para mim e eu pude perceber o quanto a história tinha suas qualidades. Mas, é aquilo: acabei sendo obscurecido pela minha visão sobre a forma em si.
10 - "Guízer contra a aranha de mil filhotes", de Duda Falcão (5 estrelas)
É impressionante o quanto o Duda Falcão consegue criar personagens e histórias interessantes. Cada momento que passa só tenho a afirmar o quanto ele é um mestre nas histórias curtas e é aquele que melhor entende o que significa escrever um pulp. Aquele tipo de narrativa que às vezes é over the top, mas te mantém entretido do começo ao fim. É praticamente impossível pegar um conto do Duda e não desejar lê-lo de uma vez só. Esse é mais um desses casos.
Na narrativa conhecemos Guízer, um escravo fugitivo de uma fazenda de produção de um papoulas, usadas para diversos fins (inclusive como alucinógeno e anabolizante). Desejando ter sua liberdade, ele foge do lugar e tenta encontrar sua irmã que havia sido vendida para alguém na capital. Mas, para seu azar, ele acaba sendo capturado e andar com documentos falsos não o ajuda muito em sua empreitada. Guízer acaba em uma prisão onde ele é comprado junto de outros prisioneiros por um homem chamado Treinador. Este atua em uma série de jogos de gladiadores e precisa de mais pessoas para o seu time. É então que Guízer se encontra em uma arena onde precisará enfrentar outros prisioneiros e uma terrível criatura saída de pesadelos.
Uma das qualidades do Duda é o quanto ele dominou a arte da história curta a ponto de escrever uma narrativa rica em um curto espaço. As limitações na maior parte das vezes acabam não sendo um empecilho para a sua imaginação. Em pouco mais de trinta páginas ele consegue criar uma história bem rica com personagens que transbordam um pano de fundo. Tudo o que ele faz aqui é nos apresentar dois personagens, Guízer e Aiomi, dos quais a gente quer saber mais sobre eles. De onde vieram? Como chegaram até ali? Quais os seus próximos passos? Se o Duda me encantou com as histórias de Kane Blackmoon e seu estranho oeste, agora coloco o fugitivo Guízer no hall de personagens memoráveis do autor.
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