Paulo 01/03/2018
Fazer quadrinhos é uma arte. Pensar nos quadros, no fundo, nos personagens, no que acontece dentro das cenas. Quem pensa que uma HQ ou um um mangá é algo raso, deveria rever seus conceitos. Ambos possuem uma riqueza de detalhes ainda maior do que um livro porque ele precisa falar aos leitores não só com diálogos, mas também com imagens. E imagens que precisam se associar àquilo que é dito. Eu já li muitos mangás, na minha adolescência e na minha fase adulta. Mas, nada me preparou para Tezuka.
Uma das coisas que mais me impressionou em Metrópolis foi a conjugação de imagem e roteiro. Quem olha Metrópolis e julga apenas pelo desenho mais antigo e até um pouco infantil, não está sendo atencioso com o que está sendo apresentado. O roteiro é incrível e fala de uma temática extremamente importante da época em que o mangá foi lançado. 1949 é o pós-Segunda Guerra Mundial e é o início da Guerra Fria. O Japão voltava completamente derrotado e tendo que lidar com uma catástrofe que foi a bomba nuclear usada em Hiroshima e Nagasaki pelos americanos. Era o início da Era Atômica também quando veríamos a ciência sendo usada para mostrar poder. E é justamente desse tema que trata Metrópolis.
A escrita de Tezuka une os quadros ao que está sendo dito. E eu raramente vi o que o autor faz: ele usa os próprios quadrinhos para brincar com o roteiro. Tem uma cena em que um cientista invade o esconderijo do partido Red e um robô chamado Fifi ajuda o cientista. Mas, eles são pegos pelo vilão que separa os dois. Para dar um exemplo ao cientista, ele usa um gás corrosivo em Fifi. Qual é a mágica disso? Tezuka usa a própria separação dos quadrinhos para criar a imagem de uma cela... é como se baixasse uma porta separando os dois. Esse emprego dos quadros como elemento de roteiro ele faz em diversos outros momentos: uma faixa que se torna um balão, balões que se tornam expressivos. É genial isso. De fato, é o Pai dos Mangás em ação.
O traço de Tezuka vai parecer estranho e até datado para alguns leitores. Eu li A Princesa e o Cavaleiro então já sabia o que esperar. E até gosto esteticamente do traço do autor. Acho ele extremamente detalhista, principalmente no que diz respeito ao cenário. Gente, sejam atentos: olhem o fundo das cenas. Muita coisa acontece ao mesmo tempo em que a ação na frente. Ele solta vários easter eggs sobre cultura e filmes da época. Tem algumas cenas que acontecem logo no começo do mangá que demonstram essa incrível habilidade do autor. Em uma reunião de cientistas para falar sobre os pontos pretos no Sol, eles se reúnem em uma sala/centro de convenções. Se vocês observarem bem, vão ver os personagens que aparecem, suas falas e tudo o que acontecem por ali. Eu fiquei uns bons dois minutos observando tudo o que se passava tamanha a riqueza da cena. As splash pages de Tezuka são inacreditáveis. E pensar que ele não contava com nenhum dos recursos que temos nos dias de hoje.
"Mas, será que não vai chegar o dia em que os humanos vão se desenvolver tanto a ponto de se extinguirem com sua própria ciência?"
O tema da ciência usada para o mal é sem dúvida o tema do mangá. O Duque Red usa os seus recursos e seus conhecimentos para tramar algo que o coloque no poder sobre as pessoas. Ele quer Michi para lhe dar essa sensação de poder. Mas, logo a gente percebe o quanto Michi não deseja fazer parte disso e até a forma como ele é criado ao lado de Kenichi ajuda nessa conscientização do personagem. Red constrói robôs para serem seus escravos e o ajudarem em seus planos malignos. Enfim, é uma crítica de Tezuka à maneira como o ser humano usa algo que poderia ajudar a desenvolver o mundo apenas para perpetuar as piores qualidades do homem. O autor usa uma metáfora muito boa e que a gente só percebe depois que terminou a leitura que é o surgimento do homem. Ele mostra os dinossauros sendo extintos e depois substituídos pelos mamíferos. Mas, todos eles foram eliminados por causas naturais. O homem, com sua ambição e voracidade, contribui para sua própria destruição. Dentre os seres vivos da natureza, o homem é o único que poderá um dia ser responsabilizado por sua própria extinção.
A relação entre Michi e os seres humanos também é bem explorada. Michi tenta se encaixar no mundo no qual ele está vivendo. Tem um amigo, frequenta uma escola, pratica esportes. Isso sem saber que ele é um ser artificial. O mais engraçado é que o esforço de Michi em tentar pertencer de fato à sociedade o torna melhor do que os seus pares. E isso gera inveja. Quando acontece a virada na história mais para o final da trama, tudo o que Michi sabia sobre o mundo vira de cabeça para baixo. Ele vai reagir imediatamente ao que lhe é colocado.
Os personagens são variados e muito ricos na sua concepção. Tezuka brinca com várias referências culturais. Tem um Sherlock Holmes, tem referências a países, em que ele brinca com estereótipos. Mas, cuidado, gente: Tezuka é de outra época em que se tinha bem menos cuidado com esses temas mais sensíveis. Fora que ele emprega essas referências como parte de sua história que é satírica. Ele não é preconceituoso nem nada do gênero. É uma brincadeira ingênua que ele faz, para brincar com determinada concepção. Em histórias mais sérias como Buddha ou Adolf, ele toma essas ideias bem mais a sério.
Metrópolis é uma aula de fazer quadrinhos (afinal mangás japoneses são quadrinhos japoneses). Somos colocados diante de um mestre contador de histórias que, com extrema sensibilidade, nos fala como devemos refletir acerca do fazer ciência. De como o ser humano quer usar o conhecimento para obter poder. E de o quanto podemos ser melhores apenas sendo mais honestos uns com os outros.
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