guilhermecardoso 22/08/2021
LENIN UNIDADE E COERÊNCIA DO PENSAR E AGIR - Maria Angelica
Livro explica muitas deturpações que o marxismo sofreu ao longo dos anos. Os clássicos devem ser lidos para conhecer o pensamento político.
O posfácio é inigualável e deixarei reproduzido aqui :
Maria Angélica Borges
? Ler O Estado e a revolução de Vladímir Ilitch Lênin é, além de entrar em contato com um autor e seu texto, conhecer um tema e um ator revolucionários e atuais. Como Karl Marx, Lênin analisou como totalidade seu momento histórico e as várias situações vividas na teoria e na prática, na ciência e na política, a partir das leis de tendência do movimento histórico. A leitura dos escritos leninianos, assim como a história conjunta de suas ações e reflexões, entusiasma e nos reanima diante das ações cotidianas.
Dadas as derrotas impostas pelo capital financeiro aos trabalhadores do globo no século XX, beber nas águas desse político e intelectual que transformou ideias em atos alimenta as expectativas de mudança do real, principalmente para as novas gerações. Os mais jovens nasceram em meio à crise estrutural do capitalismo monopolista, quando as ilusões do welfare state keynesiano ? sempre denunciadas pela economia política crítica marxiana ? já tinham feito água. O delírio reformista da social-democracia de que é possível disciplinar os bancos, fortalecer o capital produtivo e socializar os resultados para a sociedade civil já faz parte do passado. Mas, como lembrou Marx, ?o morto tolhe o vivo?. Os velhos paradigmas ainda nos comem pelas pernas.
Lênin mostrou, já em sua época, a falácia da terceira via. Esse arcabouço arcaico assume roupa nova sob o neoliberalismo, mas é impossível esconder
os remendos de um tecido surrado. É impossível superar, nesse sistema, a exploração do homem pelo homem, substituir a luta de classes pela colaboração entre elas. Tanto o líder bolchevique como o filósofo germânico e seu amigo Engels relembram que o Estado nasce com o surgimento das classes sociais para mediá-las e impedir a autodestruição do ser social. A organização gentílica, o comunismo primitivo, transforma-se em modo de produção escravista, com a instituição da propriedade privada, da herança e do direito paterno. O escravo foi a primeira forma da propriedade privada: a propriedade privada móvel. Troféu de guerra introduzido no seio da tribo vencedora, cria a oposição homem livre versus homem subjugado. Os modos de produção asiático ou hidráulico, escravista, feudal e capitalista formam a pré-história da humanidade a caminho do comunismo. Entender essa trajetória é preparar sua superação. A arma das ideias é a forma de viabilizar sua lógica em ação.
O pensar é um imperativo do agir. Não há lugar para transformação social sem prévia-ideação do chão social que faz nascer as ideias. Teleologia e causalidade formam um par na dialética materialista, e Lukács é um mestre em sua elucidação a partir da ontologia do ser social. O ser humano age sobre a natureza em cooperação com seus semelhantes, transformando o ser da natureza e o ser social. A natureza é o corpo inorgânico e orgânico do homem, e a objetivação do ser humano por meio do trabalho ocorre nas posições primária e secundária, na produção da vida e das ideias. A ontologia lukacsiana é uma lanterna que clareia nosso olhar sobre a vida do escritor russo.
Cotejando as palavras de György Lukács em seus escritos intitulados Lênin:
um estudo sobre a unidade de seu pensamento [1] , percebe-se que o demiurgo da Revolução de Outubro não isola os eventos, mas os generaliza e os reconduz à realidade, levando a conclusões que são, até hoje, contribuições e ensinamentos para a ação política. Para Lukács, Lênin representa a renovação da dialética a partir do materialismo consequente e a luta contra o irracionalismo presente no imperialismo. Logo, não é possível a neutralidade axiológica à maneira weberiana, pois os fatos históricos e os temas filosóficos estão entrelaçados nas angulações de classe. É impossível ser revolucionário ignorando as teses marxianas.
Kautsky, entre outros membros da Segunda Internacional dos Trabalhadores, não escapou da mira leniniana ao tratar das concepções de democracia e ditadura. Estas duas formas do poder não são excludentes: a ditadura do proletariado é a democracia como forma de garantir os interesses dos trabalhadores. A democracia dos capitalistas é a ditadura sobre a força de tra- balho. Contra o dirigente da social-democracia alemã, Lênin desmonta o superimperialismo, que separa o Estado da economia. Divórcio, aliás, presente tanto na visão econômica ortodoxa neoclássica como na política neoliberal. O neoliberalismo isola a economia como racional, movida por leis naturais e eternas, e trata a política como irracional, lugar das mazelas humanas. Inveja, cobiça, guerras de conquista são os demônios que borram a pureza da economia de mercado, que, se deixada em seu livre jogo, só conheceria o equilíbrio. O capitalismo é salvo pela economia natural e o ser humano, crucificado em sua ganância. Justifica-se o sistema econômico e condena-se a humanidade. No entanto, os escritos marxianos já revelaram que a política é o outro nome da economia. É o lócus onde os interesses privados da classe dominante se tornam lei. O particular se transforma em universal.
Estamos diante de um teórico continuador de Marx. Como nos ensina Lukács, é muito raro que um líder reúna duas habilidades que Lênin possui: o domínio da teoria científica e da prática política. Sua análise sobre o Estado e a revolução é um exemplo peculiar disso. Esses fenômenos são compreendidos seguindo o rastro das teses clássicas marxianas e acabam por ilustrar, por meio da análise imanente, os textos mais significativos dos fundadores da crítica do modo de produção capitalista. Ao mesmo tempo, Lênin escreveu essas páginas no calor do conflito neocolonial, depois conhecido como Primeira Guerra Mundial, e interrompeu a elaboração delas para fazer a revolução. Fica nítida a congruência de sua concepção do Estado e da visão do marxismo na matriz fundante do pensamento e da ação leninianos.
O Estado e a revolução mostra como esse entendimento se aprofundou conforme Marx amadureceu e o movimento operário cresceu e se tornou mais rico em experiências. Marx teve a paciência histórica de teorizar o real segundo sua lógica imanente. O objeto investigado se revela ao investigador em toda sua riqueza à medida que a pena do mestre avança em sua captura. As categorias são expressões da existência. O cérebro humano reflete sobre o realmente existente. O ser inorgânico se transforma no ser orgânico, que, em seu salto ontológico, se transforma no ser social. É a construção da liberdade como a consciência da necessidade. A novidade da revelação concreta é que o sujeito investigador parte da aparência e chega à essência, e, mediante a análise histórica da alteridade aparência/essência, estabelece a síntese. Nessa dialética das análises concretas de situações concretas, Marx retira a mudez do singular por meio do universal e o concretiza na particularidade. As categorias fantasmagóricas, enroladas em um véu de fumaça, têm o seu significado decifrado. Por detrás de suas máscaras, são reveladas formas antediluvianas como dinheiro, capital, trabalho, força de trabalho.
As experiências das lutas e revoluções ? a práxis ? desenvolvem e tornam robusta a visão sobre o Estado como um órgão do capital para a opressão e o controle sobre o mundo do trabalho. Será, por exemplo, com as revoluções de 1848 e com a culminação da Guerra Franco-Prussiana na Comuna de Paris que os vários temas e tarefas do cotidiano da luta de classes ganharão substância. A visão negativa da política, para além do acanhado anarquismo, coloca a destruição do Estado acima dos demais argumentos ? uma eliminação necessária, mas que não ocorre da noite para o dia e deve ocorrer por meio do próprio Estado. Lênin rejeita as visões oportunistas que defendem a conciliação das classes e, portanto, a perpetuação dos órgãos de dominação. Como o silêncio não é mais possível diante da força desse ideário, a deturpação passa a ser uma arma das correntes reformistas e chauvinistas contra o pensamento crítico.
Portanto, publicar a obra de Lênin cumpre o papel de levar a público uma visão clara dos clássicos do marxismo, desmascarando as deformações de suas ideias. Esta publicação ocorre em uma hora muito oportuna e nos remete ao desembarque de Lênin em solo russo, às vésperas da Revolução de 1917, mudando conceitos e revendo categorias analíticas, virando as concepções sobre a transição de cabeça para baixo. E mais, gera o clima propício para o ataque às grosseiras e ingênuas visões da superação do lócus de organização do mundo do trabalho, como a fábrica de ilusões que considera o blog substituto de partido e sindicatos e atribui poder absoluto às redes sociais. Lênin ridicularizou o espontaneísmo político, o poder destruidor da massa e a violência sem rumo nem direção. Prévia-ideação e ação devem ser planejadas. Lideranças precisam ser construídas. Quadros precisam ser formados. Realidades novas podem e devem ser pensadas à luz da teoria revolucionária. O arcabouço marxiano deve ser lido não como dogma, mas como ontologia do ser social, que nos abraça e nos alimenta para novas passadas à luz das especificidades do século XXI.
Vivemos uma longa noite, com tantas derrotas dos explorados pelo capital. Por isso mesmo precisamos nos preparar para as grandes transformações que virão. Nenhum poder foi, é ou será absoluto. A palavra de ordem não é praticar o esporte de fazer revoluções, e sim aprender com o passado, agir no presente segundo suas condições e sonhar com o futuro deixando de lado previsões irrealistas e abraçando análises concretas de situações concretas. Lênin aprendeu com Marx que não existem receitas e que às vezes damos um passo atrás para dar dois à frente. A informática é ferramenta, mas a organização é dos homens, dos líderes, dos partidos revolucionários. Não basta mudar os conceitos sem mudar a realidade. A multidão vista de forma abstrata não constrói o futuro e não informa como funciona o presente. Quimeras que namoram o niilismo. Espontaneísmo versus organização. Esse movimento pendular entre euforia e depressão é há muito conhecido e criticado por Marx, Engels, Lênin, Lukács e tantos outros teóricos e militantes que lutam pela emancipação humana.
Se fosse possível, num estalar de dedos, determinar o fim do capitalismo e ordenar a passagem mágica para o comunismo, deixando para trás o reino da necessidade e mergulhando no reino da liberdade, a aparência coincidiria com a essência e toda ciência seria supérflua [2] . Mas não é assim. Por isso, mais do que nunca, e principalmente para as novas gerações, os clássicos do marxismo são necessários. E, se Lênin é um companheiro nesta caminhada, sua obra é um farol que nos ajuda na travessia ? com
sua coesão, sua fidelidade aos fundadores do materialismo dialético, sua consciência dos limites da ação, seu destemor diante de passos ousados, sua firmeza diante da tarefa de guiar os camaradas, sua denúncia dos que se venderam por um prato de lentilhas. Falar e escrever sobre Lênin é falar da continuação da obra e da liderança de Marx.
Por esses e outros motivos, estar com O Estado e a revolução entre as mãos é necessário e estimulante. Aproveite a leitura. ?
São Paulo, agosto de 2017.