Laércio Becker 30/01/2021
Nelson Rodrigues resenhado por um idiota da objetividade
Segundo Nelson Rodrigues (p. 55), “todos os autores têm suas três ou quatro frases bem-sucedidas”. Pois ele tem muito mais que isso.
Em 1997, a Companhia das Letras publicou "Flor de obsessão", uma coletânea de suas sentenças, selecionadas e organizadas por Ruy Castro em ordem alfabética de assuntos. Muito boa, porque se você se lembrasse vagamente de uma ou quisesse a opinião dele sobre algum assunto, era fácil de encontrar (claro, desde que seu ilustre biógrafo a tivesse selecionado). Mas também funcionava abrindo a esmo, como uma bíblia (que, pensando bem, nunca deixou de ser).
O problema era a absoluta falta de indicação das fontes. O que seria bem fácil, pois bastava citar as edições da própria Companhia das Letras. Consequentemente, você encontrava uma pérola como “a Europa é uma burrice aparelhada de museus” (p. 60) e não tinha a mínima ideia de que ostra paginada ela saiu. Nelson me chamaria de idiota da objetividade (p. 173), mas gosto de saber a origem da frase para buscar o contexto, a linha de raciocínio etc.
Em 2012, a Nova Fronteira publicou "Nelson Rodrigues por ele mesmo", organizado pela filha Sonia Rodrigues. Não era um livro de frases, mas ao longo dele havia algumas soltas e uma relação de outras tantas nas últimas dezenove páginas, sem qualquer organização. Se fossem todas sobre si mesmo, seria compreensível. Só que não. Resultado, lá você só lia algo como “o psicanalista é uma comadre bem-paga” (p. 262) por um mero lance de sorte. E também não sabia de onde saiu (aliás, como todos os textos ali reunidos).
Agora, na virada do ano, a Nova Fronteira lança esta nova coletânea, "Só os profetas enxergam o óbvio". Que, em parte, ajuda na identificação da fonte mas... Enfim, esta obra é organizada por livro de Nelson publicado nessa editora. Então, há um capítulo com as frases de "A cabra vadia", outro de "O reacionário", outro de "Asfalto selvagem" e assim por diante. Dentro de cada capítulo, as frases são organizadas em ordem alfabética de assunto. P.ex.: o capítulo de "Memórias: a menina sem estrela" começa no verbete “Admiração e admiradores” e termina em “Vômito”; o capítulo seguinte, de "O óbvio ululante", reinicia a ordem alfabética com “Admiração” e por aí vai. Detalhe: há um sumário dos capítulos, mas não um índice dos assuntos.
Resultado: se você quiser procurar determinado assunto, terá de vasculhar em cada capítulo, um por um. No exemplo acima, note que o assunto “admiração” se repete nesses dois capítulos. Ou seja, mesmo que você encontre o assunto num capítulo, terá de garimpar em todos os demais. Sim, sou um idiota da objetividade, mas achei essa organização bem menos prática que a adotada por Ruy Castro.
Aí você pode dizer: tudo bem, mas pelo menos podemos saber de onde a frase foi pinçada, certo? Mais ou menos... Há um só capítulo para "A vida como ela é" (com apenas três páginas!), sendo que, em 2012, a Nova Fronteira publicou três coletâneas dessa coluna, totalizando 1.270 páginas. Ou seja, você encontra aí uma clássica como “o dinheiro compra até o amor verdadeiro” (p. 91) mas não sabe se ela saiu de "A vida como ela é..." (493 p.), "A vida como ela é... em 100 inéditos" (434 p.) ou "A vida como ela é... em série" (343 p.).
E o que custava dizer em que conto ela foi encontrada? O mesmo problema se repete nos capítulos dos livros de crônicas: por que não identificar a crônica? E, dos romances, em vez de indicar o capítulo, diz o nome da personagem que falou (informação bem menos relevante).
Para um idiota da objetividade como eu, em vez de empurrar o leitor para o panóptico do Google, o ideal seria organizar o livro em ordem alfabética de assuntos (como o da Companhia das Letras), mas com uma identificação mínima da fonte, como este da Nova Fronteira fez nos capítulos “Peças de teatro” (que indica a peça de onde a frase saiu), “Textos inéditos em livros” e “Entrevistas” (que indicam os jornais e revistas). Aliás, já que a coletânea foi quase toda selecionada a partir das edições da Nova Fronteira, poderia indicar até a página de onde tirou a frase.
Outra coisa. Tudo bem que “só os profetas enxergam o óbvio” (p. 7), mas não é necessário ser profeta - apenas leitor de Nelson - para saber que ele repete várias vezes alguns de seus hilariantes bordões. Porque, segundo Gide, tudo já foi dito mas, como ninguém ouve, é necessário repetir. Traduzindo para a versão rodriguiana, “as coisas ditas uma vez e só uma vez morrem inéditas” (p. 7). Por isso, ele mesmo confessa: “tenho dito, obsessivamente, que sou uma flor de obsessão” (p. 28).
Mas o que justifica, no exíguo capítulo destinado às três antologias de "A vida como ela é", uma mesma página (90) estampar duas frases praticamente idênticas: “em matéria de amor, qualquer homem é um canalha” (verbete “Amor”) e “qualquer homem é um canalha” (verbete “Canalhas e cretinos”)?
Fazer isso numa seleção tão pequena de sentenças é um pecado mortal. São apenas 127 páginas, das quais precisamos descontar as apresentações do livro e de cada capítulo, bem como os vários espaços em branco e algumas frases em fonte ampliada. Resultado: a apresentação gráfica do livro é “bonitinha, mas ordinária”, porque é feita ao custo de perda de informação. Quem compra um livro pelos espaços em branco?
Em resumo, essa publicação só se sustenta no brilhantismo verbal de Nelson. Sobrevive à irrisória seleção, à péssima organização e à falta de indicação das fontes por um motivo muito simples: porque é impossível de ser ruim qualquer seleção de frases dele. Por isso mesmo, apesar de tudo, não é dinheiro jogado fora. Ok, essa constatação é fruto da minha tietagem. Ah, mas aí sou parcial... Ora, pipocas, “o imparcial só merece a nossa gargalhada” (p. 78)!