Fausto 05/07/2024
E se "2001" fosse dirigido por Antonioni?
Você bate o olho num desenho e reconhece que foi feito por Tom Gauld. É fácil topar com cartuns dele na internet afora. São garantia de sucesso, tanto pelo timing do humor gostoso e sofisticado como pelo traço estilizado, que consegue ser ao mesmo tempo simples e rebuscado, porque Gauld usa poucos traços nos contornos, mas tem uma paciência infinita para preenchê-los com milhares de hachuras cuidadosamente rabiscadas.
É fascinante descobrir que um cartunista como Gauld, capaz de narrativas extremamente econômicas que se resolvem em até três quadrinhos, onde nada falta nem sobra, consiga fazer narrativas longas com tanta liberdade, que dão aos personagens todo o tempo e o espaço (categorias que se misturam nos quadrinhos) para se desenvolverem sem pressa.
Tanto aqui como em Golias temos o retrato da rotina maçante de um trabalhador em cenários inusitados: a Palestina de 3 mil anos atrás, no caso de um, e uma colônia na Lua em um futuro distante, no caso do outro. O protagonista aqui é o único policial de uma colônia na Lua onde nada acontece e as pessoas a cada dia vão embora. O ritmo é lento, ainda que envolvente. Gauld gosta de tempos mortos, de passar páginas e páginas mostrando personagens presos a rotinas repetitivas, burocráticas e sem sentido. Há algo de Kafka pelo absurdo burocrático, e também vi ali muito do cinema europeu dos anos 60, principalmente Antonioni, pelos longos tempos em que parece que nada acontece. Dito assim, parece chato, mas o resultado é muito engraçado. Ri sozinho, daquele jeito bobo que só os livros fazem coma gente, com os percalços do guarda e seu terapeuta-robô. Uma graça e um humor que se misturam com a melancolia, fazendo do livro algo tão variado e encantador, sombrio e iluminado, quanto as fases do lua onde a história se passa.