Alexandre Kovacs / Mundo de K 12/04/2021
Rebecca Solnit - Recordações da minha inexistência
Editora Companhia das Letras - 264 Páginas - Capa de Tereza Bettinardi - Tradução de Isa Mara Lando - Lançamento: 2021.
A escritora, historiadora e ativista norte-americana Rebecca Solnit se tornou mundialmente conhecida a partir do sucesso de público e crítica do seu livro de 2017: Os homens explicam tudo para mim. Neste best-seller, que se tornou um importante marco na defesa do feminismo, ela descreve um episódio cômico no qual um homem passou uma festa inteira falando de um livro que “ela deveria ler”, sem lhe dar chance de dizer que, na verdade, ela era a autora. Este ensaio acabou inspirando a expressão "mansplaining", geralmente creditada a ela, que significa explicação condescendente feita por homens para mulheres supostamente menos qualificadas.
As motivações e consequências da publicação deste que é considerado hoje um dos clássicos do pensamento feminista contemporâneo, assim como muitas outras passagens da biografia de Rebecca Solnit, estão resumidas neste seu mais recente lançamento, uma mistura de livro de memórias com ensaios. Ao relembrar passagens de sua formação como escritora, incluindo a experiência como crítica de arte no início da carreira, fica clara a sua consciência política e social. Na verdade, a militância durante toda a vida não se resumiu à defesa do feminismo, mas também pela preservação do meio ambiente, contra a realização de testes nucleares nos Estados Unidos, direitos indígenas e demais causas relevantes.
Neste livro, entre outros assuntos, a autora desenvolve uma reflexão muito interessante sobre a forma como em sua juventude se tornou uma "especialista em desaparecer", em passar despercebida para se esquivar dos abraços, beijos e mãos indesejadas, uma "especialista na arte da inexistência, já que a existência era tão perigosa". Enfim, para se proteger de todo tipo de agressões e assédios, desenvolveu um procedimento para se tornar inexistente: "Eu abaixava a vista, não dizia nada, evitava o contato visual, fazia tudo para ser ausente, discreta, insignificante, invisível e inaudível [...] Até meus olhos tinham que aprender a respeitar certos limites. Eu tentava me apagar ao máximo, pois 'existir' significava ser um alvo."
"A feminilidade, em sua forma mais brutalmente convencional, é um perpétuo esforço para desaparecer, para se apagar e se calar de modo a dar mais espaço aos homens, um espaço onde a existência da mulher é considerada uma agressão e sua inexistência é uma forma de graciosa aceitação. Isso está embutido na cultura de várias formas. O sobrenome de solteira da sua mãe é muito solicitado como resposta para as perguntas de segurança dos bancos e das empresas de cartão de crédito, porque se presume que o sobrenome original dela é algo secreto, foi apagado e perdido assim que ela adotou o sobrenome do marido. Não é mais regra geral que a mulher abandone seu sobrenome, mas continua raro que este seja passado à frente quando se casam; é uma das muitas maneiras como as mulheres desaparecem, ou nunca chegam a aparecer." (p. 96)
Até mesmo a ditadura do corpo impõe um ideal de beleza que demanda que a mulher seja magra a ponto de virar uma sombra, ocupar o mínimo de espaço possível. "Ser uma jovem mulher significa enfrentar a sua própria aniquilação de maneiras inumeráveis, ou então fugir dela, ou do conhecimento dela, ou todas essas coisas ao mesmo tempo." Esta busca por um caminho mais independente e equilibrado é o maior desafio para a mulher que, na maioria das vezes, é educada desde criança para pensar em termos do que os homens esperam delas e não do que elas realmente desejam, correndo o risco de desaparecer para si mesmas.
"Você depende dos homens e do que eles pensam a seu respeito; você aprende a olhar-se no espelho constantemente para ver qual a sua aparência para os homens; você atua para eles, e essa ansiedade teatral forma, ou deforma, ou paralisa completamente aquilo que você faz, diz e, por vezes, pensa. Aprende a pensar em quem você é em termos do que eles querem, e atender aos desejos deles se torna algo tão arraigado que você perde de vista o que você mesmo quer, e às vezes chega até a desaparecer para si mesma, nessa arte de aparecer para os outros. / Você está sempre em algum outro lugar. Transforma-se em árvores, lagos, pássaros; você se transforma em musas, putas, mães – o recipiente para o desejo dos outros e a tela para as projeções dos outros; e com tudo isso pode ser difícil se tornar você mesma, para você mesma. [...]" (p. 123)
Rebecca Solnit se revolta contra a forma como a mulher é representada, ou ignorada, na literatura, um mundo quase sem mulheres e onde todos os heróis e protagonistas são homens, como ela afirma com razão: "você descobre que é descrita da mesma forma que os selvagens, os criados, ou as pessoas sem importância. Existem muitas formas de aniquilação." Apesar disso, no trecho abaixo fica clara a paixão pela literatura, até mesmo na forma de "inexistência em viver através dos livros, assim como muitas outras existências, outras mentes e outros sonhos para habitar, e outras maneiras de expandir a nossa própria existência imaginativa e imaginária."
"Há algo surpreendente na leitura, em suspender nosso próprio tempo e lugar para viajar ao tempo e ao lugar de outras pessoas. É uma forma de desaparecer de onde você está – não exatamente entrando na mente do autor, mas se envolvendo com ele de modo que alguma coisa surja entre a sua mente e a dele. Você traduz as palavras com suas próprias imagens, com os rostos e lugares que você conhece, luzes e sombras, sons e emoções. Na sua cabeça surge um mundo – mundo que você construiu segundo as instruções do autor, e quando você está presente nesse mundo, está ausente do seu. Você é um fantasma nesses dois mundos, e uma espécie de deus no mundo que não é exatamente o que o autor escreveu, mas um híbrido da imaginação dele e da sua. As palavras são instruções, o livro é um kit, a plena existência dele é algo imaterial, interno, um evento, e não um objeto, e depois uma influência e uma lembrança. É o leitor que traz o livro à vida." (p. 125)
Um livro inteligente e libertador para homens e mulheres entenderem melhor o novo feminismo e, com tantas citações perspicazes contidas nesta obra, destaco uma de James Baldwin (1924-1987), particularmente importante para os dias de hoje no Brasil: "É a inocência que constitui o crime" e não podemos mais nos dar ao luxo de sermos inocentes, intencionalmente ou não.
Sobre a autora: Rebecca Solnit é escritora e ativista. É autora de Os homens explicam tudo para mim (Cultrix, 2017), A mãe de todas as perguntas (Companhia das Letras, 2017) e De quem é esta história? (Companhia das Letras, 2020), além de mais de quinze livros sobre feminismo, história indígena e ocidental, poder popular, mudança social e insurreição, entre outros temas contemporâneos. Nascida e criada na Califórnia, é colunista do jornal The Guardian e colaboradora do portal Literary Hub.