Fernando 27/06/2021Sangue, sexo e memórias"São Paulo pode ser muito solitária, e a solidão transfigura o tempo e sua matéria. E eu, o que devo fazer com a eternidade deitada no meu colo?" (posição 105)
Eu fico aqui pensando como, em questão de horas, eu entrei e sai desse livro, praticamente, duas pessoas diferentes. Acho que tudo começou quando eu me deparei com uma narrativa que me surpreendeu, entregando um estilo que eu não estava esperando, e terminou quando juntou tudo que eu amo em uma história: vampiros, gays, a implacável São Paulo, erotismo e poesia.
É fácil dizer que Adonai, ao fazer mais uma vítima para continuar sua existência, contrai todas as vísceras psicológicas de Lucius e se vê entremeado na primeira paixão do jovem, Amadeo. Agora, não é fácil explicar como a trama nos apresenta isso, já que João Victor Barbosa, ao construir seus vampiros que chupam tanto o sangue quanto as memórias dos desafortunados que cruzam seus caminhos, nos presenteia com uma narrativa que segue a linha de Clarice Lispector e Virginia Woolf: fluxo de consciência, a busca por si mesmo no caos do mundo.
Então, muito mais do que uma simples linearidade, a cabeça de Adonai, nosso narrador em primeira pessoa, está infestada de outras vozes, que se interpelam e se tornam ele por espaços de tempo. Mas se engana quem pensa que o vampiro é só um conglomerado de outros, longe disso, Adonai é marcado pela mazela da quase-morte que vive todo dia, da saudade da mãe que o faz reinventar as memórias que tem dela (e mesmo até procurar o gosto do colostro nos pescoços de bebês de colo), a ausência do amigo Jozu, que larga São Paulo pra trás em busca da simplicidade de uma vida pré-humana, longe das vozes e do caos. E, como se todo o peso de não saber mais quem é, depois de seus 100 anos de imortalidade, Adonai se vê preso às memórias de Lucius, que obrigam o vampiro a dar vazão aos desejos imputados pelas memórias do agora cadáver que amou Amadeo, garantindo uma nesga de vida às memórias do humano que fora seu jantar.
É nessas reviravoltas que a trama de um romance psicológico muito bem construído vai tecendo frente aos nossos olhos o retrato de uma São Paulo decadente, enfocando a pós-vida de Adonai pelo seu olho mental, que compreende muitas outras vozes que se confundem, se misturam e se esbarram. Adonai é marcado pela insatisfação que a eternidade causa, buscando tanto o futuro quanto a volta, se vendo preso num presente sem fim, enquanto tenta emergir e retomar seu espaço dentro de seu próprio corpo.
Essa é a dor e a delícia de fazer uma resenha de uma história que conta tudo por si só, o grande talvez de não conseguir fazer jus a tudo que o livro trás consigo. Todas as personagens são palpáveis, seu sofrimentos e anseios se misturam e poderiam ser os de qualquer um de nós.
Uma experiência de leitura incomparável, com uma voluptuosa delícia de morbidez, sexo casual e desespero, misturados no melhor que as reverberações da geração de 45 do nosso Modernismo têm a nos brindar.
Disponível no Kindle Unlimited.