savagedaughter 10/06/2022
Um morto muito louco (ou lúcido demais, depende da perspectiva)
Imaginem que a escrita com humor sarcástico de Douglas Adams encontra a capacidade de Machado de quebrar a quarta parede e fazer um morto contar suas memórias e conversar com o leitor? Pois bem. Esse encontro existe e está no livro As Últimas Memórias de um Morto-Vivo, do autor Diego Rates.
Sabemos que um zumbi, ou um morto-vivo, nada mais é que uma carcaça que anda por aí e come cérebros, sem consciência alguma de sua condição e de “eu”. Mas nosso narrador protagonista não é um morto-vivo qualquer. Ele tem plena consciência de sua condição e nós acompanhamos ao longo da leitura suas reflexões e sua persistência em adquirir (ou readquirir) essa noção de “eu”, de quem ele foi e quem ele é agora. Por isso, por causa desse nível de racionalização das coisas, de sua mente viva e ativa, nosso carismático zumbi não é um morto-vivo e sim um vivo-morto. E ele sabe muito bem que vai chegar o dia em que ele vai ser um morto-morto, basta que algum vivo-vivo siga a regra de ouro ao atacá-lo: atirar na cabeça. Os irmãos zumbis parecem não ter muita noção disso (eles não têm noção de muita coisa), e só querem andar e comer. Nem mesmo os vivos-vivos costumam se atentar para a regra de ouro. Quando o narrador encara um vivo-vivo que, mesmo com uma arma apontada para ele, não segue a regra e apenas foge, algo na mente do nosso vivo-morto desperta.
O livro segue a jornada de autoconhecimento e de tomada de consciência do protagonista. Ele narra seu dia a dia no apocalipse zumbi intercalando a monotonia de seu cotidiano com acontecimentos inesperados e cruciais para a sua descoberta do “eu”. A escrita do Diego é fluída e tem essa pegada de sarcasmo que dá bastante humor ao texto, então a gente ri, mesmo sendo trágico. Mas, para além do humor e do sarcasmo, o livro nos faz problematizar nossa própria condição de zumbis. Somos zumbis quando fazemos tudo no automático e apenas seguimos o fluxo, somos zumbis quando estamos apenas esperando a morte, a verdadeira morte, chegar, e não vivendo, apenas existindo. E o pulo do gato para sair dessa condição, para viver de verdade e não apenas existir, é justamente o que ocorre com nosso protagonista: a tomada de consciência e o autoconhecimento.