Carla.Parreira 08/03/2024
Senta que nem moça: um guia descomplicado sobre sexualidade e prazer (Marcela Mc Gowan). Melhores trechos: "...Para a manutenção das mulheres nessa 'roda de rato' atrás do ideal de beleza, é necessário que haja um padrão defnido, algo a ser seguido e buscado. E não é de hoje que esses padrões existem. Ao longo da história, eles foram sofrendo alterações, e o que era considerado belo, em geral, se relacionava àquilo que simbolizava poder em cada época. PRÉ-HISTÓRIA - A fertilidade era fortemente celebrada nesse período. As esculturas encontradas, portanto, apresentavam corpos femininos voluptuosos, com seios fartos, quadris largos e barriga proeminente. ANTIGUIDADE - Para os gregos antigos a beleza não estava no corpo feminino. A beleza era qualidade do corpo masculino. Nas artes, o corpo feminino belo era representado próximo ao padrão masculino, com poucas curvas, braços e pernas fortes, o rosto sereno ou mesmo inexpressivo. IDADE MÉDIA - Amplamente infuenciada por valores religiosos, na Idade Média a beleza passa a ser entendida como consequência de pureza, obediência e devoção. Na arte, a representação de nudez que cultuava o corpo sai de cena, dando lugar ao recato. O corpo das mulheres era considerado, acima de tudo, um elemento de tentação. A beleza, nessa época, passa a ser intimamente conectada ao divino e às virtudes morais. As vestimentas, então, eram volumosas e tinham a intenção de esconder o corpo. RENASCIMENTO - Os valores humanistas ganham força novamente e a sociedade volta a valorizar o corpo feminino, tendo como modelo de beleza mulheres mais curvilíneas, de ancas largas e seios generosos. O excesso de peso era típico dos abastados e nobres, da classe dominante, já que o seu modo de vida era abastecido dos melhores alimentos da época e se afastava de qualquer atividade física desgastante. Assim, estar acima do peso era associado ao poder, fosse financeiro ou político. Mulheres magras eram vistas como pessoas sem saúde e sem graça, desprovidas de beleza. SÉCULO XVII - Com o passar do tempo, os corpos magros começaram a ser cada vez mais valorizados, e qualquer sacrifício era válido para alcançá-los. Esse período foi altamente marcado pelo uso de espartilhos, que eram importantes “aliados” das mulheres na conquista do ideal de corpo que foi se estabelecendo: cintura fina e marcada, quadris largos e seios proeminentes. As saias volumosas também eram utilizadas com esse objetivo. APOS 1920 - A Revolução Industrial, que colaborou para os avanços na luta de emancipação das mulheres, trouxe mudanças profundas nos padrões de beleza e no vestuário. O ideal contemplava corpos mais magros e, como consequência da busca por direitos e igualdade de gênero, visuais andróginos, com poucas curvas e cabelos curtos. Muitas mulheres usavam achatadores para comprimir busto e quadril, deixando o corpo retilíneo, sem curva alguma. APOS 1950 - Após os tempos difíceis vividos durante a Segunda Guerra Mundial (19401945), a abundância e a fartura eram o desejo da população, e isso se estendeu também ao corpo das mulheres. Essa época foi marcada pelas pin-ups e pela figura de Marilyn Monroe, com o retorno de curvas, cinturas finas, quadris largos e seios fartos, acentuados pelos sutiãs com enchimento. APOS 1980 - Nesse período, a era fitness começou a imperar. Houve um expressivo aumento no número de academias e treinos de ginástica em casa, com a chegada do videocassete. As mulheres dessa época desejavam braços e pernas bem definidos e um corpo magro e atlético. APOS 1990 O mercado da moda ganhou muita força nessa década, e as supermodelos passaram a ser as principais referências de beleza. Desse modo, a magreza e a altura passaram a ser atributos cada vez mais desejados pelas mulheres. Anos 2000 e Atualidade - A internet é a principal ditadora de padrões, que mudam com mais velocidade. Das musas fitness às irmãs Kardashians, o que vemos é que o poder continua ditando os padrões. Muitas horas de dedicação a exercícios físicos, ou intervenções estéticas frequentes, demarcam dois elementos de poder para a nossa sociedade: tempo e dinheiro... Em qualquer das situações, há uma indústria que sai ganhando. Vivemos, então, em um mundo no qual a beleza, o corpo e, consequentemente, a imagem corporal da mulher são altamente rentáveis. Quanto mais insatisfeita e mais longe de conseguir sentir e proporcionar prazer a si mesma a mulher estiver, mais rentável ela será para diversos setores da indústria. E aqui podemos adicionar outras camadas de complexidade à questão. Além do corpo magro, há o fato de que corpos brancos — isto é, de fenótipos europeus — são considerados mais belos do que corpos pretos, pardos, amarelos, indígenas. E não para por aí. O olhar da beleza exclui também pessoas com deficiência (PcDs). Falamos sobre isso no capítulo 1, mas repito: se, no Brasil, segundo levantamento do Instituto Brasiliero de Geografia (IBGE), temos mais de 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência (o equivalente a quase 25% da população), por que não vemos PcDs como modelos de propagandas, ancorando jornais, estrelando novelas, figurando nas capas de revista? Poderíamos, ainda, falar de performance de gênero e de como mulheres que não performam conforme o esperado e exigido do feminino sofrem e são estigmatizadas... A neutralidade corporal tem como objetivo destacar o que o nosso corpo é capaz de fazer, e não o que ele aparenta. É esse mindset que nos guia para uma abordagem mais benéfica, uma vez que pode ser, sim, que tenhamos marcas ou cometamos falhas, mas, apesar disso, esse corpo nos mantém vivas e nos permite a vivência de muitas experiências, como sorrir, abraçar, dançar — e isso é incrível... Ao 'deflorar' uma mulher, o homem tinha a certeza de que perpetuava sua linhagem e de que poderia, tranquilamente, transmitir de pai para filho sua herança biológica, seu nome, seus bens e poderes. No Brasil, por exemplo, até meados do século XIX, era comum que, na manhã seguinte ao casamento, fosse estendido na janela do casal um lençol sujo de sangue. A mancha comprovava a pureza da mulher até a noite de núpcias. Tudo o que discutimos até aqui se baseia em aspectos culturais, sociais, religiosos e políticos. Quando a sociedade nos faz acreditar que a virgindade está relacionada à pureza da alma e do corpo, está tentando fazer com que deixemos de nos preocupar com as questões relacionadas ao nosso próprio prazer. Mesmo hoje, essa fantasia da 'boa moça', antes veiculada pela preocupação com a virgindade, ainda existe, embora tenha ganhado outras roupagens. Ser virgem e alcançar e manter o status de 'boa moça' ainda é tão reforçado como ideal, que nós, mulheres, passamos a pensar que: 1. É nosso dever preservar a nossa virgindade para a pessoa certa, pois não podemos entregar alg valioso para qualquer um. 2. Somos responsáveis por dar prazer aos parceiros, temos dificuldade de chegar ao orgasmo e pensamos em sexo. 3. A vagina é suja e tem cheiro forte, e isso deve ser combatido — basta vermos a quantidad sabonetes íntimos disponíveis no mercado. 4. Ter muitos parceiros pode acabar com a nossa reputação; ou seja, não podemos sair por aí trans sempre que quisermos, pois podemos acabar sozinhas. Você percebe o que está em jogo? Para que os sistemas de opressão continuem operando, certas convenções devem ser mantidas, mesmo que repaginadas... A noção de que a relação sexual ocorre somente quando há penetração de um pênis na vagina não exclui somente os casais homoafetivos, mas também exclui toda e qualquer outra prática sexual, como, por exemplo, o sexo anal e o sexo oral. Trata-se, desse modo, tanto de uma afirmação homofóbica e transfóbica do ponto de vista social, quanto de uma afirmação errada do ponto de vista biológico... A Organização Mundial da Saúde (OMS) faz questão de reforçar que não há evidências de que o hímen possa provar se uma mulher ou uma jovem fez sexo ou não... Acontece que essa é uma interpretação que não encontra eco na realidade biológica. A começar pelo fato de que nem todas as mulheres têm hímen. São casos raros, é verdade, mas ainda assim existem e devem ser considerados... A resistência de um hímen pode variar, e muito. Alguns são mais flexíveis e chegam a permanecer intactos mesmo após um parto normal. Já outros são mais delicados e podem se modificar com pequenas ações corriqueiras, como atividades físicas ou quedas. Basicamente, se você tiver um hímen elástico, você nunca sangrará na primeira vez que transar — e talvez nem nas próximas. É anatomicamente impossível. E adivinhe só? No Brasil, esse é justamente o caso de duas em cada dez mulheres... A dor pode estar relacionada a diversos fatores, mas, com toda a certeza, a explicação para senti-la não é o fato de haver o rompimento do hímen. Muitas vezes ela está relacionada à falta de lubrificação da região da vagina e até mesmo à tensão... A camisinha feminina foi inventada e, embora seja bem mais cara que um preservativo masculino — que, inclusive, é distribuído gratuitamente em toda a rede do Sistema Único de Saúde (SUS) —, cumpre exatamente as mesmas funções da versão masculina, ou seja, impede a transmissão de ISTs e evita a gravidez. Mas lembre-se: nada de usar os dois ao mesmo tempo, pois o látex pode romper e, aí sim, deixar você e seu parceiro desprotegidos... Acredito que não há como perder algo que não existe. A virgindade é uma criação sociocultural com uma função bem delineada: controlar nosso corpo e nossa sexualidade. Portanto, a resposta para a pergunta é muito simples: fica à sua escolha! As possibilidades são inúmeras. Você pode falar que é virgem para sempre, pode contar que deixou de ser virgem na noite anterior, que aconteceu quando você deu seu primeiro beijo ou que deixou a virgindade pra lá quando fez sexo oral pela primeira vez. Em resumo, não importa o que você decida dizer ou que data você escolha, porque, em termos biológicos, esse evento não existe. Em síntese: siga fazendo o sexo que você bem entender porque, no fim das contas, ninguém tem absolutamente nada a ver com a sua vida sexual — a não ser, claro, as pessoas envolvidas nela. Divirta-se... Ao depilarmos totalmente nossas partes íntimas, por exemplo, deixamos nossa vulva parecida com a de crianças e adolescentes. O que está por trás dessa tentativa de infantilização de mulheres adultas? A ideia de submissão, controle? Sem dúvida, vale uns minutos de reflexão! Do ponto de vista médico, não há um consenso sobre depilação. Há ginecologistas que defendem que a remoção total de pelos deixa a vagina mais exposta e, por isso, mais suscetível a bactérias e inflamações, e há aqueles que acreditam que os malefícios devem ser observados caso a caso, já que os hábitos modernos de higiene e o uso de roupas substituem um pouco a função de proteção. Na prática, existem mulheres que, ao se depilarem, acabam apresentando infecções recorrentes, lesões na pele e foliculites, enquanto outras não apresentam qualquer reação. Por isso, no fim das contas, a depilação não deve jamais partir de uma imposição, mas sim de uma avaliação extremamente pessoal que você deve fazer a respeito de seu corpo e de suas crenças... Aos olhos do patriarcado, uma mulher que coloca seu dinheiro a serviço da pressão estética é menos perigosa para a manutenção do sistema vigente do que aquela que usa o mesmo montante para investir em conhecimento e autonomia... No que diz respeito ao desejo, alguns estudos indicam que nosso cérebro tem uma espécie de 'acelerador' sexual, que responde positivamente aos estímulos sexuais relevantes, e uma espécie 'freio' sexual, que responde a estímulos que inibem o tesão. Ou seja, tudo que você escuta, vê, cheira, prova, toca ou imagina será avaliado pelo seu cérebro, e ele é quem determina se aquilo é algo excitante ou inibidor... É possível ter prazer sem ter orgasmos: uma relação sexual pode ser extremamente prazerosa e desencadear muitas sensações agradáveis e de realização, mesmo quando não termina em orgasmo. É possível ter orgasmos sem prazer: existem orgasmos em situações não sexuais — como dura sono ou ao realizar atividades físicas... Por fim, outro termo muito utilizado quando falamos de sexo é 'gozar'. Em geral, ele é associado à ejaculação. Nesse caso, gozar e ter um orgasmo seriam coisas diferentes, uma vez que é possível ter orgasmos sem ejacular e vice-versa... A história da sexualidade feminina no Ocidente foi pautada na culpa, na vergonha e no controle dos nossos corpos — ideias muito reforçadas pela cultura judaico-cristã, em que qualquer prática que não levasse à procriação era objeto de punição. O corpo é pecaminoso e o prazer, estigmatizado. A partir do início do século XVIII, a masturbação foi elevada à condição de prejudicial, geradora de doenças físicas e mentais. Nessa época, dr. Tissot, um influente médico e físico suíço, fez uma declaração firme sobre o tema: 'Esse hábito funesto faz morrer mais jovens do que todas as doenças juntas'. Diversos textos da época aterrorizavam as pessoas com os 'malefícios' da masturbação. Olheiras, fraqueza, dor de cabeça, perda da beleza e da vitalidade, problemas de crescimento, infertilidade, dificuldades digestivas eram alguns dos efeitos vinculados a essa prática. Várias 'técnicas curativas' para quem praticasse a masturbação — envolvendo amarração das mãos, colocação de uma gaiola para cobrir a genitália, uso de cinto de castidade, aplicação de ácido no clitóris e até extirpação do clitóris — chegaram a ser preconizadas na Europa. No início do século XX, surgiram algumas mudanças na ciência. A Psicanálise apontava a masturbação como algo natural, embora sugerisse que esta era uma forma 'infantil' ou 'imatura' de prazer para as mulheres. Segundo Sigmund Freud, a mulher só atingiria a maturidade sexual após transferir a atividade da masturbação clitoriana para a atividade verdadeiramente feminina do coito (leia-se: sexo com penetração). Paralelamente a toda essa construção histórica e social da masturbação, temos a narrativa do prazer feminino ignorada e silenciada durante milhares de anos... Eu me lembro do relato de uma mulher que desejava muito fazer ménage com o marido e outro homem, mas não tinha coragem de verbalizar. Um dia, comprou um vibrador e colocou o nome de 'Ricardo' nele. Às vezes, na hora H, brincava: 'posso colocar o Ricardão no meio?'. Com o tempo, eles se acostumaram com a brincadeira e passaram a fantasiar que o vibrador era uma terceira pessoa, até o dia em que finalmente conversaram e realizaram de fato a fantasia... A verdade é que o ciúme é um condicionamento cultural. Aprendemos a ser ciumentos, romantizamos o sentimento de possessão das relações, acreditamos que o ciúme faz parte do amor, e isso nos leva a aceitar diversos tipos de violência e atitudes desrespeitosas com a nossa liberdade e com a dos outros..."