jota 26/06/2022Ler romances é um prazer profundo e singular, uma atividade humana absorvente e misteriosa: palavras de Philip RothAvaliação da leitura: 4,7/5,0
Lido entre 06 e 22 de junho de 2022.
Roth responde à pergunta que dá título ao livro “sem disfarces, invenções e artifícios do romance”, como ele próprio afirma. Não pretendia mudar alguma coisa na cultura, queria mesmo era conquistar profundamente quem o lia: “Quero é possuir meus leitores enquanto estiverem lendo meus livros -- se possível, possuí-los de formas que outros escritores não possuem.” Na verdade, quer não apenas isso, mas um pouco mais ainda. Que esses leitores depois voltem:
“[...] exatamente como são, a um mundo em que todos os demais estão se esforçando para mudá-los, persuadi-los, aliciá-los e controlá-los. Os melhores leitores vêm para a ficção para se livrar de todos esses ruídos, para liberar a consciência que de outro modo está condicionada e limitada por tudo o que não é ficção.” E conclui sabiamente: “Isso é algo que toda criança, apaixonada por livros, compreende na hora, embora as crianças não tenham de forma alguma essa ideia da importância da leitura.”
Tudo isso e muito, muito mais, encontramos nas mais de 550 páginas de Por Que Escrever? Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013), publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2022. Originalmente lançado em 2017 o volume apresenta trinta e sete textos entre ensaios, entrevistas e discursos, além de uma pequena, mas bastante completa cronologia no final. Ao longo do tempo ele conversou e ou trocou correspondência com grandes escritores americanos e estrangeiros, visitou-os em seus países, conheceu alguns de seus cônjuges ou familiares, como as irmãs de Franz Kafka etc.
Nessa lista estão escritores do porte de Primo Levi, Aaron Appelfeld, Ivan Klima, Milan Kundera, Edna O'Brien, Mary McCarty, Isaac B. Singer. Além das conversas com esses notáveis temos também sua análise da obra de Saul Bellow, Bernard Malamud e Bruno Schulz. Admirava todos eles, mas o autor que mais se destaca aqui, além dele próprio, claro, é o tcheco Kafka, citado inúmeras vezes e personagem de um ensaio especial. Roth também lembra o prazer que foi lecionar numa universidade, durante um semestre, sobre os principais títulos do autor de A Metamorfose.
O início se destaca com Roth tratando das polêmicas que envolveram a publicação de O Complexo de Portnoy (1969), seu romance mais famoso e vendido ao longo da carreira, considerado obsceno, escandaloso, ofensivo aos judeus etc. Notáveis representantes da comunidade judaica americana levaram muito tempo criticando Roth não apenas por esse livro, também porque ele seria um judeu que não se comportava de acordo com o que se esperava de outro igual, que exaltasse o caráter de seu povo e não que escrevesse sobre um jovem viciado em sexo, coisas assim. Depois disso ele exalta Kafka e reproduz algumas entrevistas que concedeu a destacados órgãos de imprensa mundiais e também aquelas que realizou com os escritores estrangeiros que admirava -- parte deles do leste europeu, então dominado pela antiga União Soviética.
Em seguida se volta com profundidade para a questão inicial: por que escrever, para que servem os livros, especialmente os romances? Então ele analisa seus próprios livros, que foram 31 publicados. São 27 romances e 4 obras de não ficção, lançados desde 1959, ano em que saiu o volume de contos Adeus, Columbus, até 2010, ano da publicação de Nêmesis. Desses todos li 18, o que fez de Roth não apenas um autor favorito como o que mais li até o momento. Meus preferidos: O Complexo de Portnoy (1969), Patrimônio (1991), O Teatro de Sabbath (1995), Pastoral Americana (1997), A Marca Humana (2000), Indignação (2008).
Roth fazia uma distinção entre os leitores comuns e os outros, digamos, a chamada intelectualidade americana ou europeia. Acreditava que “[...] os romances só causam efeitos significativos naquele punhado de pessoas que são escritores, e cujos próprios romances são obviamente afetados de forma significativa pelos livros dos outros romancistas. Não consigo ver nada parecido acontecendo com o leitor comum, nem esperaria que acontecesse.” E prossegue, quando o entrevistador lhe pergunta então do que serviam os romances para os leitores comuns, nós todos:
“Os romances proporcionam aos leitores alguma coisa para ler. Na melhor das hipóteses, os escritores modificam a forma como os leitores leem. Essa me parece ser a única expectativa realista. Também me parece ser suficiente. Ler romances é um prazer profundo e singular, uma atividade humana absorvente e misteriosa -- que, como o sexo, não exige nenhuma justificativa moral ou política.” Além disso, ele não acreditava que seus livros tivessem mudado alguma coisa na cultura americana, de modo algum, como já foi dito no início.
Vale a pena transcrever também a última pergunta do entrevistador e a resposta de Roth, claro: “Como você se descreveria? O que acha que é, em comparação com seus protagonistas, que atravessam vívidos processos de transformação?” E Roth: “Sou como alguém que está tentando vividamente se transformar num de meus protagonistas em vívido processo de transformação. Sou bem parecido com quem passa o dia inteiro escrevendo.” É isso, então. De minha parte quero me transformar num eterno leitor e releitor (existe isso?) de Philip Roth.