mpettrus 16/05/2024
?A Membrana Fina da Mutabilidade da Vida?
?[..] eu queria que cada momento importasse; estava viciada em dilacerar meus pensamentos, aquele rasgo no tecido da atmosfera.?
? Fernando Pessoa dizia que não era preciso viajar para conhecer o ser humano. Ele acreditava que tudo estava na cabeça.
Contado em primeira pessoa, ?Frio o bastante para nevar? gira em torno de uma viagem ao Japão entre mãe e filha abordando esse relacionamento com uma suavidade distinta, cultivando uma inexorável contenção emocional entre elas.
? Elas caminham e viajam de trem; visitam lojas, cafés, galerias, igrejas e templos. A jovem narradora dessa história faz uma viagem espectral ao Japão com sua mãe e descobre que a distância entre o que lembramos e o que imaginamos não é clara ? e não vem ao caso.
? A história é pontuada por reflexões ocasionais da narradora sobre a arte, memórias e a mãe, numa linguagem simples e quase totalmente desprovida de metáforas, é algo semelhante a uma experiência meditativa.
A filha é uma observadora faminta, cheia de perguntas sobre seu lugar no mundo. A sua viagem para o Japão com a mãe se transforma em uma viagem de autodescoberta.
? A viagem é sempre uma metáfora útil para outros tipos de movimento, e fica claro desde o início que para onde realmente a narradora quer ir, é algum lugar buscando uma maior proximidade e compreensão de si mesma, transformando a atenção plena em um princípio estético, fazendo das pequenas observações o grande chamariz da narrativa e, assim, elevando-as para uma realidade emocional - mas não tenho certeza se é sempre tão profundo.
? Ela própria está preocupada em tentar descobrir coisas sobre si mesma e sobre sua própria vida, inclusive se deseja ter filhos, mas também parece sinceramente interessada em sua mãe, cuja reserva e auto anulação dão a ela uma qualidade remota e evasiva.
Nesse sentido, a narradora sempre me pareceu solitária, apesar da presença da mãe. O romance ambulante ? posicionado como está entre o flaneurial e o loco-descritivo ? é geralmente um caso solitário.
A narradora se move pelo espaço, registrando quaisquer impressões que o ambiente lhe cause. E embora outros personagens possam surgir nas lembranças, o diálogo central tenderá a ser entre a narradora e o próprio espaço ? ou seja, entre a narradora e ela mesma.
? Por isso, considerei a narrativa desse romance uma leitura estranha, porque temos aqui uma narradora solitária, vagando pelo espaço e espremendo sangue experiencial da pedra de um lugar desconhecido.
A autora se esforça dolorosamente para estabelecer uma atmosfera de isolamento onírico, mas também garante que sua narradora nunca esteja totalmente sozinha.
? Todo o texto permanece elevado e imparcial, limpo, mas não preciso ? e isso é claramente intencional.
As descrições do Japão são esparsas e inseridas em um fluxo de consciência que pondera as relações familiares e a herança intergeracional, o relacionamento romântico da filha (narradora) e ocorrências de como lidar com um cliente autoritário no trabalho - tudo feito de forma consciente e atenta, infundido com um desejo de conexão. É suficiente observar?
? Usando o tempo como uma moldura fluida, as palavras de Au evocam imaginações e memórias, falando de como as vidas humanas são vividas em mentes que se movem fluidamente através de momentos no tempo.
Ela constrói camadas de imagens usando ecos e projeções; suas personagens distorcem a realidade em esforços subconscientes para ver a vida como elas a imaginam.
? Membranas cada vez mais finas entre a memória e o momento refletem a fragilidade da cronologia sólida dentro do próprio livro, enquanto o mundo interior da narradora traz personalidade e textura a esta história incomum.
? Embora nada aqui pretenda ser autoficção, tem a qualidade elegíaca e memorialística do antecedente próximo dessa forma; o japonês ?shishosetsu? ou ?eu romance?, esse livro é melancólico e evasivo.
?O romance é escrito em prosa simples e luminescente, profundamente belo, ricamente potente em seus temas, mas que resiste a explicações simples.
Apesar de ser um livro fino, não me foi uma leitura rápida, pois fui impulsionado pela tensão entre presença e ausência, amor e vergonha, cuidar e ser cuidado, passado e presente, pertencimento e alteridade, enquanto seu significado se desdobrava lentamente, demorando-se.
Não é um romance de epifanias, revelações ou avanços; não há drama. O tom é tranquilo, cuidadoso, evocativo e minimalista.
Às vezes fico impaciente com romances tão parcos, mas neste caso os pequenos gestos de ternura que mãe e filha demonstraram entre si já diziam o suficiente: o momento em que se encontram depois de um ou dois dias sem se verem e a mãe corre em direção à filha, segurando uma sacola de supermercado com o jantar ou quando a filha, vendo a mãe lutando com o sapato, se ajoelha para ajudá-la a calçá-lo.
Um dos trechos mais comovente do livro é quando a narradora se imagina vasculhando os pertences da mãe, cômodo por cômodo, item por item. Depois de uma visão tão devastadora, o romance volta ao seu modo habitual de suavidade estoica e balsâmica.
A narradora volta à caminhada faz um chá e continua caminhando. O silêncio que a autora narra é terrivelmente palpável.
? O livro de Au contém silêncio como as pinturas contêm espaço negativo. A língua, a arte e a cultura existem neste mundo tanto como meio de conexão quanto como barreira à verdadeira compreensão.
? As traduções de linguagem entre as personagens de Au não são diferentes das traduções de linguagem entre culturas. Mas a vida, ao contrário da arte, nunca pode lidar com valores absolutos, e não existe uma interpretação verdadeira de nada.
Principalmente aqui, onde a arte e a literatura contêm mundos dentro de mundos, mundos como poderiam ser e mundos como são vistos.
? Esse romance não é fácil de escrever porque sua própria essência é a mutabilidade da vida. Como você define algo que parece ser impossível de fixar?
E, no entanto, Au consegue definir esse fato, ou, pelo menos, transmitir a ideia de que, como a filha vislumbra perto do fim: ?talvez fosse bom não entender todas as coisas, mas simplesmente vê-las e segurá-las?.
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