Tuca 28/08/2020Esse, para mim, foi um livro complicado de interpretar, porque você pode olhar para ele de diversos ângulos: uma crítica social, um aviso, uma provocação, uma censura... com um final ainda mais multifacetado dependendo assim de como se escolhe encará-lo, e com personagens cujas atitudes não são julgadas com uma régua moral única.
North Dormer, uma pequena cidade na Nova Inglaterra (EUA), aos pés de uma enigmática montanha, foi onde Charity Royall crescera. Adotada pelo advogado Royall e sua esposa, ela havia sido trazida do local descrito como não civilizado e pobre, e o qual pouco sabemos ao longo da trama, a tal montanha. Com a morte da esposa, quando Charity ainda era pequena, Mr. Royall acaba a criando sozinho, porém ele passa a se apaixonar ou sentir luxúria -não sei ao certo- em relação a Charity. Mas casar-se com o pai adotivo era tudo o que ela não queria, e quando o jovem arquiteto Lucius Harney aparece na cidade, mesmo sendo bastante consciente de que nada de bom pode sair desse relacionamento, ela decide vivê-lo.
O romance é contado pelo ponto de vista de Charity, com todo seu orgulho, toda sua dureza e todos os seus medos. Ela é uma menina claramente boba, que se auto inferioriza durante todo seu romance com Harney, e para uma moça que veio do nada, ela é extremamente soberba. Esse não é um enredo de personagens simpáticos ou amáveis, é um enredo conduzido pelos perigos da sedução e da opressão social e patriarcal do início do século XX. E aí nesse ponto, estamos na minha interpretação, porque como eu mencionei a história pode ser compreendida de diversas formas. Em “Verão”, Edith faz algo similar a Mrs. Henry Wood em “O pecado de lady isabel”, ela destaca os caminhos em falso das mocinhas, porém ao contrário da última a intenção não parece ser de uma moral cristã, tanto é que “Verão” escandalizou a sociedade da época. Ele aproxima-se muito mais de uma crítica, de como nossas escolhas não eram realmente escolhas, de como nossas vidas eram limitadas e de como, para a mulher, ser sexualmente livre vinha com um peso social gigantesco e desproporcional.
Edith aponta uma sociedade de homens costurada pelo poder. As mulheres eram limitadas em tudo, porque poucas tinham esse privilégio. Elas não tinham dinheiro, não tinham força, não tinha voz, e não eram livres, sempre amarradas pela linha da submissão. Aos homens, os donos da agulha, tudo era possível, tudo era permitido, e deles nada era cobrado. A elas, a vida resumia-se a decidir a cor ou a grossura do cordão cerzido ao seu redor. E assim, tudo era forma de controle, mas principalmente, o exercício da sexualidade feminina. E se pensarmos bem, progredimos muito ao longo dos anos, mas a gerência de nossos corpos continua sendo uma maneira de nos julgar, nos restringir e nos submeter.
Edith Wharton foi uma romancista que em sua própria vida ultrapassou os limites do papel de gênero da época. Ela foi uma das mais bem pagas autoras do período nos Estados Unidos, tendo ganhado o prêmio Pulitzer por “A época da inocência”, era divorciada, viajava constantemente sozinha e tinha muitos amigos homens, dentre eles Henry James, de acordo com a página do livro no site encyclopedia.com . Isso em um tempo em que a luta por mais direitos das mulheres como o do voto estavam pipocando ao redor do mundo.
Apesar de ser classificado por diversos críticos como um romance de formação e tendo como um dos principais temas o despertar sexual de uma jovem, quando “Verão” foi publicado, o amigo de Edith, Bernad Berenson elogiou o personagem Mr. Royall, a isso ela lhe respondeu “claro, ele é o livro”, dando a entender que o protagonismo da história pertencia na verdade ao advogado. Ela provavelmente tinha bebido álcool demais para falar isso. E mais uma vez voltamos à questão da interpretação desse livro. Eu posso entender completamente a importância de Royall no desenrolar da problemática e na resolução dos conflitos, mas me desculpe, Edith, Charity é o livro. E isso é um grande peso para afundar um pouco a trama, porque ela inicialmente é alguém por quem senti empatia, porém depois de alguns poucos capítulos ela torna-se insuportável.
Leia esse livro pela ótima escrita, pela crítica à opressão feminina e social, pela importância literária da autora, e até mesmo pela coerência do final (que eu não gostei, mas não posso negar que foi adequado), mas esteja ciente que os personagens não são o forte dele.
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