Bela Calli 10/07/2022
A viagem não contada...
Em “No Mar das Trevas: A travessia do Tenebroso”, somos recebidos com uma breve contextualização histórica sobre o Reino de Portugal, e a situação política e econômica mundial que levou ao início da era das navegações. Apesar de se tratar de uma ficção, o autor mantém a verossimilhança da época, sendo bem fiel às características do século XV, mesclando figuras históricas e acontecimentos verídicos com muita criatividade!
Passada a introdução, conhecemos nosso protagonista e futuro capitão-mor, Pedro Álvares Cabral — um mulherengo inveterado — que foi “convocado” pelo Rei Manuel I para conduzir uma expedição a Ilha Brasilis que, até então, dizia-se ser um mito. O problema é que, para chegar até esse destino supostamente cheio de riquezas, seria necessário atravessar o “Mar Tenebroso”. E mantendo-se fiel à história, Cabral partiu com treze navios em sua frota, sem sequer imaginar os acontecimentos terríveis que os aguardavam.
O livro é longo, assim como os 44 dias de viagem de Cabral ao Brasil. A narrativa em terceira pessoa é feita com um português mais rebuscado e isso dá um ar mais elegante e condizente com a época retratada. Às vezes, tive a impressão de ler um clássico. Essa é uma característica que gostei, pois casa muito bem com a proposta.
"Há muitos homens que, apesar de andar e respirar, estão mortos há muitos anos, selados em seus ataúdes de medo, vivendo entre as sombras, no limbo da incerteza, da dúvida. [...] Atente-se para não ser um morto em vida, não mereces isso."
Outro elemento que me chamou muito a atenção foi a forma que as cenas de tensão são formadas, com pequenos indícios aqui e ali que, quando enfim juntos, causa uma grande sensação de terror. Esse livro foi capaz de me causar calafrios em alguns momentos, especialmente porque a parte do horror é MUITO bem feita.
Não pretendo me aprofundar muito em quais adversidades Cabral encontrou em sua viagem pelo Tenebroso, pois acredito que o elemento surpresa é um ótimo aliado na hora de construir a tensão. Você realmente ficará tenso, pois as cenas são tão bem descritas que as emoções simplesmente exalam através das palavras. Tiveram momentos que fiquei muito angustiada, em especial os pequenos detalhes que passariam despercebidos se eu não fosse treinada no gênero do horror. Esses indícios de que dará uma merda gigantesca — com o perdão da palavra — é para mim o ponto mais forte da obra.
"Aviso à alma que ousa penetrar as águas escuras do infeliz além-mar, prepara-te para pagar o preço por teu caminho avante, tuas tripas abertas num imenso mar de sangue.
Volte, Cabral, enquanto ainda tens sorte, pois teu destino te reserva uma dolorosa e macabra morte."
E como nem só de aventuras (nesse caso, desgraças) vive um homem, temos também uma pitada de romance! Quem diria que nosso ávido amante, Pedro Álvares Cabral, se apaixonaria por uma das tripulantes clandestinas da sua nau-capitânia? Pois é. Diziam, naquela época, que mulheres trazem má-sorte quando estão a bordo. Nesse caso, Cabral teria em dobro, já que Bianca — sua irmã de consideração — e sua amiga Ursula se infiltraram. Não foi somente Cabral e Ursula que engataram um breve romance, mas também Bianca com seu admirador secreto.
O romance foi utilizado para dar um fôlego aos personagens e aos leitores, quebrando um pouco a atmosfera tensa causada após tantos horrores. Assim como romances de época, o desenvolvimento é sereno. Por não ser o foco principal do livro e pelo horror ter capturado minha atenção por completo, não me envolvi emocionalmente com nenhum dos casais, mas é algo particular. Na verdade, acho importante momentos assim intercalados na narrativa, pois na dose certa, como está, é um ótimo recurso.
Quanto aos personagens, eles também são bem descritos e possuem personalidades bem demarcadas. Pensei que não me afeiçoaria muito a nenhum, afinal, a maioria foi inspirada em figuras históricas reais. Mas torci pelos protagonistas e suas naus e, de certa forma, também senti suas perdas. Só que isso mudou um pouco quando eles atracaram na tal Ilha Brasilis.
De certo modo, o peso da realidade bateu forte. Nesta ficção, Cabral e seus companheiros não agiram com violência, especialmente porque os indígenas que encontraram eram tão puros que muitos ali desacreditaram. E olha, foi muito bonito a forma qual o autor retratou esse contato entre dois mundos tão distintos, e mais bonito ainda como ele trouxe a inocência dos nativos em sua narrativa. A troca dos presentes, a confiança excessiva, a hospitalidade…
Mas novamente, até mesmo na narrativa tinha alguns lembretes de que esse povo seria morto, escravizado e insultado no futuro. E isso me entristeceu muito! Por que teve de ser assim, tão injusto?…
Em dado momento, acompanhar a viagem daqueles homens por mares tão perigosos me fez esquecer do objetivo pelo qual se lançaram nas águas inexploradas: riquezas. E vê-los chegar na ilha até então “intocada” com sua prepotência de “nação superior” e arrogância de “salvadores da alma” foi um choque de realidade. E isso porque os personagens foram tão cativantes que me esqueci, durante a maior parte da leitura, que se tratava de pessoas reais, que marcaram histórias reais, e é um dos motivos de estarmos aqui hoje. Tem um peso nisso, sabe? Especialmente quando sabemos o desfecho dessa história.
"Achava que aquelas pessoas não nasceram para serem aprisionadas, mesmo que por algumas horas.
Sequer sonhava que, no futuro, aquela gente seria perseguida, roubada, escravizada e dizimada com o passar dos séculos, perdendo a maior parte de suas terras."
Mais uma vez, quero ressaltar que o autor foi muito dedicado, cuidadoso e condizente com as características da época. Os detalhes das embarcações e condições de viagem, por exemplo, evidenciam quão exímia foi a pesquisa. Leandro evidentemente se esforçou muito para fundamentar a história de forma que parecesse relatos verdadeiros, quais foram ocultos dos livros de história porque são “contados por loucos”.
Se me dissessem que tais histórias foram encontradas em diários de bordo, eu não duvidaria… (a vida sempre é mais gostosa com um toque de fantasia)
Uma única ressalva, que me deixou um tanto confusa, é que o final foi bem abrupto. A princípio, pensei que meu ebook estava com algum problema, com páginas faltando, já que estava em 98% e o clímax ali, rolando. Nova ameaça, pessoas desaparecidas, corpos encontrados… e acabou assim, com um baita gancho encaixado na minha mandíbula como o Marlim-azul que Cabral pescou na sua viagem.
O livro terminou e me deixou com várias teorias que serão, certamente, abordadas no próximo livro, como “o quê foi o causador de todas aquelas coisas na viagem?”, “eram fatos isolados?” Ou até mesmo “seria tudo fruto de magia negra?”
É evidente que essas respostas virão na continuação, mas o final me causou um pouco de estranheza. Mas que isso atiçou a curiosidade, atiçou. E muito!
Enfim, “No Mar das Trevas” é um livro que te ensinará (e muito) sobre história, navegações, e de quebra trará curiosidades legais sobre o século XV. Ainda que agraciada com elementos ficcionais, essa é uma aventura cativante, uma grande aula cheia de aprendizados e novas perspectivas.