Vania.Cristina 23/02/2024
Em busca da sinceridade íntima, silenciosa e humilde
Aqui temos as famosas cartas de Rainer Maria Rilke, na época um poeta já consagrado da língua alemã, endereçadas ao jovem Franz Kappus, que queria ser escritor e buscava caminhos.
Fiz questão de ler pela primeira vez esse clássico da literatura nessa edição da Planeta, porque traz não apenas as cartas de Rilke como também as do jovem aprendiz de poeta. No começo me arrependi um pouquinho porque Kappus estava demasiadamente centrado em si mesmo, em suas questões e interesses pessoais, o que expôs muito sua fragilidade. Já as respostas de Rilke a Kappus são de uma sabedoria que impressiona, suas palavras são belas e seus pensamentos complexos, trazendo questões universais.
Aos poucos Kappus, que veio a se tornar jornalista, foi me provando seu valor. Como apêndice do livro há alguns de seus poemas e um texto que ele escreveu sobre um ano novo solitário, vivido na fronteira deserta e perigosa, na época em que ele atuava como militar. Eu gostei especialmente do texto, onde me parece que ele tenta aplicar alguns ensinamentos do mestre.
No entanto, o que se tornou clássico foi o trabalho de Rilke. Suas palavras influenciaram pessoas no mundo todo, principalmente os artistas. (Jane Fonda e Lady Gaga são alguns exemplos de ícones da cultura pop que já declararam a admiração que nutrem pelas cartas que Rilke escreveu a Kappos).
Embora a troca de cartas dê a impressão de ser entre um velho e sábio mestre e seu jovem pupilo, a diferença de idade entre os dois era de apenas oito anos. Só que Rilke já era o maior poeta do seu país e Kappos apenas um jovem tenente que gostava de escrever.
Kappus expôs sua intimidade nas cartas, por isso nunca fez questão que as suas fossem publicadas. Mas tomou a iniciativa de publicar as cartas de Rilke endereçadas a ele, logo após o poeta ter falecido.
A grande beleza do texto é que Rilke não está falando apenas para o jovem poeta, está falando ao mundo, em especial à juventude. Kappus fala de si, Rilke responde evitando questões pequenas e individuais e buscando um olhar maduro e amplo.
Dessa forma, eles discutem muito sobre arte e o ato de escrever. Se Kappus pede a Rilke que lhe diga se deve continuar escrevendo, a resposta que encontra é que deve "cavar fundo em si mesmo em busca de uma resposta profunda".
Se Kappus busca a opinião crítica de Rilke sobre seus trabalhos, o mestre diz que não acredita na crítica estética, e que o artista deve se perguntar se precisa de fato criar e deve encontrar em si mesmo a motivação. Pode buscar caminhos no contato com a natureza, no cotidiano, na própria infância.
Fala da solidão como inevitável para o indivíduo e essencial para o processo criativo. Estimula Kappus a buscar a " sinceridade íntima, silenciosa e humilde" e a utilizar "as coisas ao seu redor para se expressar."
Rilke critica a arte morta dos museus e das obras arquitetônicas, dizendo que há "pouquíssimas coisas em que perdura o eterno". Mas também afirma que a beleza pode ser encontrada em todos os lugares, principalmente na arte que dialoga com a natureza.
Mas os dois não conversam apenas sobre arte, falam, entre outras coisas, de sexo, de amor e de Deus. Rilke diz que devemos pensar em Deus como o futuro e no amor como algo a aprender. Para Rilke, o prazer sexual é uma forma de viver o mundo, como a arte também é.
De uma forma bastante avançada para o seu tempo, a meu ver, Rilke também fala das questões de gênero como sendo fardos culturais. Para ele, o gênero feminino e o masculino não são opostos, são mais próximos do que imaginamos. E o casamento amoroso é uma relação de uma pessoa com outra pessoa: "duas solidões que se protegem".
Para acalmar o coração entristecido de Kappus, Rilke recomenda a ele ser silencioso, paciente e aberto. A tristeza e a perda não deixam de ser o novo "que nos adentra". É preciso se permitir sentir a tristeza quando ela vier.
Com tantos pensamentos importantes, esse livro não é para ser lido apenas uma vez. Desconfio que outras leituras trarão novas descobertas.
Ainda sobre essa edição, ela traz notas explicativas ao final do livro, um texto de Erich Unglaub, "Trocar Correspondências", e outro de Freud, "Sobre a Transitoriedade", onde ele faz uma reflexão a partir de um encontro que teve com Rilke.