Wesley170 19/04/2023
Uma nova visão
A adicção se tornou um assunto quase esquecido no meio teológico e pouco comentado no meio filosófico. Grande parte das nossas opiniões sobre o tema se dá tão somente pela chamada opinião cientifica, que caracteriza a adicção como doença, ou a opinião religiosa infundada, que sem nenhum aprofundamento reflexivo sério, rotula como pecado. No geral, parece que a ciência bateu o martelo decisivamente para que a definição de doença seja amplamente aceita, inclusive pela igreja, que por motivos não muito claros desistiu de fazer reflexões bíblicas no que tange a adicção. É uma doença? Quais as evidências cientificas que confirmam essa teoria? É algo que se encontra exclusivamente no campo da moralidade religiosa? Com explicar a experiencia adicta em face da opinião voluntarista? Kent Dunnington, PHD em filosofia, professor em teologia ética e filosofia da adicção, traz de forma aprofundada cada uma dessas indagações respondidas em seu livro Vício e virtude – a adicção sob uma perspectiva teológica.
O autor desenvolve o tema de forma muito ordenada e coerente. Inicialmente ele desmistifica a adicção como doença e mostra que só é possível fazer essas afirmações com alguns pressupostos científicos que não foram muito bem elaborados para a definição em questão. Em uma das suas melhores desconstruções da adicção como doença, ele demonstra que para chegar a essa conclusão é pressuposto alterações estruturais no cérebro do adicto, que ele refuta argumentando que tais alterações também ocorrem nos cérebros de musicistas e que isso não os torna doentes e nem retira a voluntariedade do músico ao tocar um instrumento. Outro pressuposto descontruído, é o de que se trata de uma doença simplesmente porque ela tem bases genéticas, ignorando o fato de que predisposição genética também não anula o ato voluntário do agente, pois até mesmo crianças, que cientificamente herdam genes dos seus pais que influenciam o pensamento e a ação, não são consideradas doentes por seus comportamentos alegres ou religiosos que foram herdados.
O tratamento que normalmente é oferecido para adictos é o medicamentoso, sendo esse influenciado pela definição de adicção como doença. Kent argumenta que essas intervenções medicamentosas não são apoiadas por evidências, levando em consideração que a maioria dos adictos param de praticar as suas adicções em um contexto livre de influências médicas, passando a levar uma vida normal, até mesmo, livre de recaídas. Um dado interessante que o livro nos traz é que o índice de remissão (recuperação) é significativamente menor em um contexto de tratamento médico se comparado com a população em geral, a maioria da qual não procura tratamento. Os dados também demonstram que o baixo índice de recuperação está em desacordo com uma evidência que o autor considera a mais abrangente: essas pesquisas são realizadas com pacientes que obtiverem tratamento, ignorando a população significativamente maior de pessoas adictas que se recuperaram e nunca procuraram um tratamento. Ou seja, os dados claramente demonstram que os índices de recuperação são maiores do que os relatados pelas organizações de saúde e que o tratamento da adicção como doença não pode ser fundamentada no sucesso do tratamento médico, que de fato é inferior ao índice de recuperação da população em geral.
O autor sugere que para deixamos de acreditar em supostas dicotomias levantadas por uma falta de compreensão da adicção, devemos recuperar a categoria da adicção como um hábito. Com as mais diversas citações de filósofos e teólogos, em especial Aristóteles e Tomás de Aquino, ele argumenta que a adicção se enquadra na categoria de hábito e faz reflexões incríveis sobre a deliberação do comportamento, a voluntariedade da ação e as suas aplicações em um contexto de adicção devem formar um panorama em que o agente determina racionalmente que um comportamento deve ser rejeitado e, ainda assim, se envolve no comportamento, agindo contrário a sua escolha e juízo racional, inclusive, após anos sem o uso da substância adictiva, o que torna tudo ainda mais intrigante. Ainda de acordo com a argumentação, a categoria de hábito é aquela que intermedia o determinismo causado pela definição de doença e o voluntarismo dado como resposta rápida aqueles que não aprovam essa definição. Dessa forma, a recuperação, conforme definida por Kent, consiste no desenvolvimento de novos hábitos com um trabalho interno necessário para esse desenvolvimento. Outros aspectos no livro são: adicção e intemperança, em que incluem definições dos prazeres sensoriais e os bens morais; Adicção e modernidade – o adicto como profeta involuntário; o tédio moderno e a solidão moderna.
Além do pensamento da adicção na categoria de hábito, o autor nos propõe uma compreensão antiga e correta da adicção como pecado, o que aumenta ainda mais o nosso entendimento sobre o comportamento adictivo. É argumentado que essa categoria não implica em uma postura moralista e nem voluntarista, mas que se harmoniza com o ensino de agostinho de escravidão da vontade humana, que por sinal, é muito bem exposta pelo autor utilizando-se de outras citações. Dessa forma, na teologia agostiniana, podemos ser incapazes de não pecar e, ainda assim, ser considerado agindo voluntariamente em nosso pecado. Da mesma forma que a categoria de hábito intermedia o determinismo da definição doença e o voluntarismo oposto, a doutrina do pecado faz a mediação entre o pelagianismo extremamente voluntarista, por um lado, e o maniqueísmo determinista, por outro lado. Dessa forma, Dunnington demonstra que a abordagem da adicçaõ como pecado pode ser acomodada a experiência do adicto e o discurso da adicção.
Nos últimos capítulos do livro, Kent aponta a adicção como uma adoração falsificada e uma busca de encontrar no imanente aquilo que só pode ser encontrando no transcendente. De acordo com ele, ser um adicto é entrar em uma relação com a substância na qual tudo na vida só faz sentido quando ela o acompanha e da significado a todas as outras coisas. A proposta é de que apenas caridade, que é o amor completo, obsessivo e real a Deus, pode ordenar todos os nossos atos para o seu fim e se impor sobre todos os outros hábitos adictivos. A busca adicta por algo maior do que qualquer coisa que está no seu cotidiano se encerra quando ele entra em um relacionamento com o Deus transcendente que dá significado e ordena todas as demais afeições. O papel da comunidade cristã e o que os adictos buscam nos grupos de doze passos, que não é encontrado na igreja, é explorado nesses capítulos finais dessa obra necessária para os nossos dias de relativização e cientificismo desordenado e infundado.