Lili.Baillarge 20/08/2022
Jornada fantástica e crítica ao colonialismo
“Dona Horteloup ia com os pratos sujos, vinha com mais comida, trazia café, cevava mate, enquanto eu os ouvia com um sorriso constrangido, e isso é o que ficou na minha memória, meu sorriso constrangido e meus olhos constrangidos que escondiam o desejo de lhes dizer que o planalto (não a tundra) estava longe de ser um purgatório, que se sofreram tanto por que não partiam, que se o odiavam tanto por que não iam de uma vez por todas para outro lugar, ou será que eles não percebiam que sua mera presença, que aquelas mesmas cercas que tanto lhes custava plantar eram a praga, entre tantas outras pragas que os europeus já haviam trazido, que estava transformando o planalto patagônico em um tormento, em um inferno na terra, em um purgatório, se gostavam tanto dessa palavra, pra aqueles que nunca a haviam considerado um purgatório.” (p.60)
Nascido sob os ventos da Patagônia do início do século XX e no começo do livro já um seminarista em Turim, Manuel recebe recorrentemente a visita curiosa que exerce uma intensa, e tão curiosa quanto, atratividade sobre ele e lembra o unicórnio bíblico — uma espécie de bisão com um único, longo e imponente chifre na testa — que avistou pela primeira vez em pinturas rupestres, pintadas por seus ancestrais tehuelches que acredita que foram escolhidos por Deus para cuidar do animal precioso que ele tentará encontrar.
Nesse romance de formação e thriller histórico, Fabián Martínez Siccardi faz uma denúncia ao massacre aos indígenas patagônicos com ataques, doenças e reduções de território de povos nômades, critica a forma de progresso, desenvolvimento, ironiza o entendimento de identidade nacional por parte da população branca argentina, descendentes de colonizadores e imigrantes europeus, e expõe o preconceito sofrido por indivíduos não brancos tanto no país como na Europa com uma narrativa magnética, com precisão histórica impressionante e com um ar místico e misterioso que me prendeu até o fim.
“Dos sobreviventes indígenas, que foram milhares, os homens se meteram naquelas estâncias para trabalhar por comida, as mulheres se casaram com colonos, seus descendentes foram embranquecendo, sua língua e religião se perdendo, e assim sua história permaneceu ancorada em um eterno pluscuamperfecto, o que em inglês chamam de passado perfeito. Enquanto isso, os imigrantes que sobreviveram à peste construíram prédios, escolas e hospitais, onde penduravam suas bandeiras e estandartes, pinturas a óleo e fotos de suas cidades e paisagens, e ali se reuniam para celebrar suas culturas, falar suas línguas, rezar suas orações até que, pouco a pouco, conseguiram entrar no trem da civilização e do progresso daquele país imberbe.” (p. 276)
Mestiço, filho de pai espanhol e mãe tehuelche, ambos mortos, inicia seus estudos em um colégio católico por sugestão da dona das terras que a mãe trabalhara, lá, entre como único com descendência indígena, por um tempo, passa a sofrer com o preconceito que iria acompanhá-lo por toda a vida, mas que pareceu nele fortificar ao longo de tantos eventos de descoberta e sofrimento esse desejo de mostrar quem eram os tehuelches de verdade e de se colocar como tehuelche e não como mestiço, e um dos principais méritos de Fabián é saber descrever bem os sentimentos de um personagem tão intenso, tão bem quanto descreve as imagens que orbitam o personagem.
“Um pouco depois, o silêncio foi quebrado novamente, mas desta vez pelo ranger de dentes e pelo tremor de nossos corpos. Estava claro que com o flagelo do vento e com apenas um cobertor iríamos morrer de frio, e sem dizer uma palavra nos aproximamos. Não me lembro se ele me abraçou ou eu o abracei, mas acabamos atados um no outro. O cheiro de Reyes era pungente, como se além da falta geral de limpeza, as cebolas de Nayahué ainda estivessem suando. Meu cheiro talvez fosse pior, não sei, mas ficamos assim até o raiar do dia, debaixo daqueles cobertores onde não só os vapores de dois homens imundos se cruzavam, mas também a resignação e a impertinência: duas maneiras opostas de ser mestiços.” (p. 226)
As excursões de Manuel pela Patagônia, depois pelos Andes, e a conexão dele com o espaço nas mãos do autor, me fez lembrar das duas visitas que fiz ao Parque Nacional de Sete Cidades e como o trajeto até lá e o lugar tiveram um aspecto mágico, magnético, místico para mim, lembrar a força da conexão que tive com um local como nunca tive antes com qualquer outro, cercada de floresta, de pinturas, de rochas com seus formatos curiosos, esculturas do tempo, do vento, da água, deu uma vontade de retornar, o que no momento é infelizmente impossível. Também deu vontade de conhecer a Patagônia e seu magnetismo. Esse despertar de sentimentos reais, não muito comum nas minhas leituras, é o que coloca a obra entre um dos preferidos do ano.