Paulo 25/06/2023
O que acontece se você retirar tudo aquilo que é supérfluo em uma cena de quadrinhos? Tire os balões de fala. A arte-final. As cores. Os retoques. Deixe apenas o essencial: o desenho feito a lápis. Cada traço criando um rosto, uma silhueta. Montando um cenário ao fundo usando traços grosseiros e crus. Uma mescla do grafite com o papel em branco, criando uma cena. Isso é o que Matotti se desafiou a fazer neste quadrinho. Uma ideia que pode parecer estranha para a maior parte dos leitores de quadrinhos, mas que na visão de um artista representa a própria epistemologia da arte. O resultado vai te causar estranhamento em um primeiro momento, mas depois de quatro ou cinco páginas, a ideia vai parecendo estranhamente genial. Não é um quadrinho para entrar na galeria dos melhores do ano, e sim algo para te fazer refletir sobre o que é arte e como desenvolvê-la em sua mais pura expressão. É um quadrinho que me fez apurar o meu olhar e reeducá-lo para entender as engrenagens que fizeram Matotti pensar dessa maneira. E faz sentido, em uma últimna análise.
"Percebi que para conseguir dar a ideia de movimento em uma imagem estática, era necessário conseguir retirar o que é supérfluo para manter apenas a extrema tensão da linha e da forma."
Matotti partiu de uma proposta simples: representar o sentimento de amor imortal entre os dois famosos amantes em todas as pranchas. Absolutamente todas, com exceção do primeiro quadro (o abrir das cortinas da peça de teatro) e o último (o fechar das cortinas, encerrando o espetáculo) contém os protagonistas. Ele consegue representar o amor entre os dois em diferentes abordagens apenas repetindo-os pelo cenário, sem balões de fala, contando apenas com a nossa compreensão do que está acontecendo ali. Começa com um amor inocente entre dois jovens: Romeu, que sobe em uma árvore e expressa seu amor puro por uma doce Julieta. É a primavera da juventude onde tudo é possível, o cupido flechando dois corações apaixonados. Depois passa para um amor secreto, com duas famílias que se odeiam e eles precisando se esconder a todo custo: Romeu atrás de uma moita, os dois em um beco escuro. A seguir temos o amor sexual, com os toques e as carícias levando às primeiras experiências. E por fim, o amor desesperado, com a possibilidade do fim se aproximando a qualquer momento e o sexo se tornando sôfrego e ansioso. O artista consegue representar tudo isso sem falar nada, sem apresentar qualquer outro cenário além daquele onde os dois se encontram. Não há nenhum outro personagem aqui.
Algo que fica muito claro desde o começo da HQ é a noção de sequencialidade. É incrível como mesmo desenhando pranchas diferentes, Matotti nos passa uma estranha impressão, ao passar os quadros, de que as figuras estão em movimento. Como naqueles desenhos repetidos que nós viramos a página para ver os personagens realizando ações como se estivessem animados. Não só existe uma sequencialidade como também uma temporalidade. As expressões dos personagens mudam, denotando que houve uma passagem de tempo entre os acontecimentos. Frequentemente nos referimos a Will Eisner ao entender os quadrinhos como uma arte sequencial. Nesta HQ o conceito é levado ao seu extremo quando o artista retira tudo aquilo que ele considerava sem importância para a mensagem que ele queria passar. Outro ponto que vale destacar é como os personagens são expressivos, seja em seu olhar, ou na forma como eles tocam um ao outro. Tem um dos quadros em que Romeu põe as mãos no rosto de Julieta que a cena é de uma calidez que toca o coração. Mesmo quando passamos para as cenas mais quentes do quadrinho, a forma como um se dirige ao outro comanda a cena. Tem um dos quadros em que Romeu está deitado de lado e Julieta está do outro lado da cama, seminua, em que eles trocam um olhar que pode resumir desejo e amor ao mesmo tempo. Assim como a cena final também transparece sentimentos que se chocam.
Esse é um daqueles quadrinhos que não é voltado para todos. É experimental, repleto de nuances e conceitos que vão fazer aquele que acompanha a cena de quadrinhos a partir de um lado mais artístico refletir sobre o que é realmente essencial para a construção dos quadros, o que oferece sequencialidade às cenas, como organizar um roteiro cronologicamente, como dar sentido a uma cena sem qualquer diálogo. Matotti é um gênio que merece sua atenção. Talvez não por esse quadrinho, mas assim, eu acredito que toda e qualquer experiência é válida. Para mim, esta bela adaptação consegue trazer a carga dramática, a emoção e a pura essência do fazer quadrinhos. Fez com que eu pegasse e revesse alguns dos meus manuais de teoria de quadrinhos e desse uma lida. E só isso já valeu.