Lucas 14/06/2023
O bolsonarismo, suas origens e repercussões: um fenômeno fermentado por anos e que veio para ficar
O bolsonarismo, a alcunha dada ao movimento de fortalecimento da extrema-direita brasileira nos últimos anos, será um capítulo à parte nos livros de história das gerações vindouras. Entender racionalmente esse movimento de hoje, onde estamos contaminados ou com as paixões despertadas ou com os reflexos dessas influências em outros que nos rodeiam, é um processo complicado, até mesmo porque os efeitos desse radicalismo específico ainda serão percebidos por muito tempo.
Esta sensação, pelo menos a mim, foi determinante para a leitura de O Ovo da Serpente, livro lançado pela jornalista Consuelo Dieguez poucas semanas antes do primeiro turno das eleições de 2022. O livro em si é bem construído, há dezenas de informações de bastidores, várias entrevistas, mas ele "apenas" sintetiza tudo o que já se poderia ter se imaginado sobre Jair Bolsonaro e seus asseclas.
Iniciando no dramático episódio do atentado à faca sofrido pelo presidenciável, Dieguez descreve estruturalmente este fenômeno de ascensão da extrema-direita, cujo nascimento e avanço passam bem antes de 2018. Mais especificamente em 2013, com os protestos feitos em São Paulo em função do aumento do preço de passagens de ônibus a qual verbalizou um sentimento de indignação quase que coletivo pelo Brasil afora. Diante de uma economia estagnada (e que posteriormente entrou em recessão) e várias denúncias de corrupção contra o governo Dilma e personagens da sua base de apoio, nascia ali uma exacerbação de ódios políticos sem precedentes na história nacional, mudando até mesmo relações de amizades e familiares em razão de percepções políticas distintas.
Bolsonaro em si não foi protagonista desse processo, mas soube se apropriar como ninguém dessa força de mobilização que surgia para canalizar uma corrente de apoiadores apaixonados. Seu jeito espontâneo, politicamente incorreto e desleixado formaram o conjunto perfeito para uma aglutinação de pensamentos radicais que vinham sendo suprimidos ao longo das décadas (como o caráter "totalmente restaurador" da ditadura militar, a "inutilidade" de políticas de inclusão social, o "heroísmo" de torturadores, etc.). Estes pontos, que para muitos podem ser apenas matizes de um sujeito tosco, atingiram em cheio uma classe conservadora importante no Brasil, que se via desde a redemocratização resignada a se amparar em gente mais próxima do centro (como Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Aécio Neves) para impedir ou dificultar o "plano comunista" do PT. Pela primeira vez em muitas décadas, havia alguém que representava esse campo da direita, "conservador nos costumes e liberal na economia" e nunca, nem na ditadura militar, alguém conversava com esse público com tanta "eloquência" quanto Jair Messias Bolsonaro.
A lapidação do então deputado federal pelo Rio de Janeiro, saindo de uma figura quase caricata e mal vista por boa parte da direita tradicional para que se tornasse um candidato palatável na maior parte dos escopos sociais, ocorreu depois de um processo de influências externas, como o auxílio do advogado Gustavo Bebianno (falecido em 2020), o publicitário Marcos Carvalho e os empresários Paulo Marinho e seu filho André (famoso pelas imitações do futuro presidente). O apoio jurídico, propagandístico e financeiro dessas figuras foi essencial para sua posterior eleição, mas não garantiu-lhes gratidão: todos, por diferentes razões, foram sumariamente chutados do posterior governo ou do círculo do presidente.
Esta é, entretanto, uma das facetas malignas daquilo que o movimento chama de combate à "velha política", que na verdade corresponde a um conjunto de práticas sentimentais baseadas em intransigência, vingança e perseguição. A tal da "nova política" esconde práticas tão nefastas quanto àquelas pelo grupo combatidas, como ilustra a bombástica saída do ex-juiz federal Sergio Moro do Ministério da Justiça em 2020. Um outro símbolo dessa prática é bem explicado por Consuelo no PSL de São Paulo: ao ser "alugado" ao candidato, as lideranças do partido no estado foram injustificadamente defenestradas por jovens "rebeldes" (dentre eles Eduardo, o filho 03 do presidente). Aparentemente, postagens escandalosas e midiáticas em redes sociais sobre determinadas pessoas ou situações são mais viáveis do que diálogo com as partes. Esse sentimento se fortalece quando se analisa o mandato do presidente, marcado por cargos ao famigerado centrão em troca de blindagem política, numa manobra jurássica (e repetida pelo seu sucessor, diga-se) e tão criticada anteriormente por Bolsonaro.
O fenômeno do bolsonarismo não estará apenas nos livros de história do futuro, mas também servirá didaticamente como um estudo de caso bem-sucedido de estratégias de marketing. A forma com que até mesmo os filhos do presidente (em especial Carlos, o 02) surfaram na onda da popularização e consolidação das redes sociais é digna de nota (assim como o emprego sistemático de notícias falsas ou, no mínimo, distorcidas). Aliado a este entendimento, há a subestimação destes mecanismos por parte da imprensa analítica e da esquerda, a qual foi um erro gravíssimo e que ridicularizou (e ainda ridiculariza) jornalistas e políticos mais tradicionais. É ainda mais destacável, assim, o tratamento cru que Consuelo Dieguez dispensa a certos colegas jornalistas experientes, que caíram na lábia limitada e radical de Jair Bolsonaro.
A autora acerta quando traz depoimentos exclusivos de testemunhas que estiveram na campanha presidencial de 2018, mas ela peca ao não tratar de outros pontos que certamente amplificariam todo o cenário que levou à vitória bolsonarista e que não foram ocasionados pelo líder do movimento. Nesse sentido, dois tópicos são menosprezados: o primeiro deles é o papel de radicalização política amplificado nas eleições de 2014, quando Dilma Rousseff, usando a máquina do poder de forma similar ao jorro de dinheiro instituído por Bolsonaro em 2022, vence Aécio Neves. O político mineiro comprou esse discurso divisório (ele chegou a hesitar em reconhecer a derrota) e, involuntariamente, fez a ponte do seu partido, o PSDB, para a solidificação posterior do bolsonarismo como única oposição à esquerda. Outro ponto ignorado é o papel decisivo "desempenhado" pelo juiz Sergio Moro em todo esse contexto: o tempo tratou de trazer sinais bastante cristalinos de que o juiz possuía motivações bem obscuras para seu trabalho na operação Lava Jato, mas ele é relegado a um plano secundário no livro. Nas outras temáticas a que se propõe, Dieguez é precisa, num estilo direto, claro, crítico e jamais caminhando para a panfletagem barata que muitas vezes personagens importantes da esquerda assumem quando avaliam seus opositores.
O Ovo da Serpente é um bom livro jornalístico contemporâneo, delimitado às eleições de 2018 (não é descrita uma vírgula sobre a formação e posterior governo Bolsonaro, apenas um índice que descreve os rumos atuais de personagens importantes). Como personagem político, Jair Bolsonaro e seu movimento ainda estão sendo e continuarão julgados pela história. Seja como uma caricatura ou como um herói para um segmento doentio (e numeroso) da sociedade, o bolsonarismo e suas práticas ainda influenciarão a política brasileira por décadas.