Carla.Parreira 19/04/2024
De olhos abertos: Uma história não contada sobre relacionamento abusivo (Manuela Xavier). Melhores trechos: "...Numa relação abusiva, a crescente da violência vai se dando de modo que, quando percebemos, tudo já escalonou muito rápido, e vamos perdendo a noção dos absurdos porque eles se naturalizam. Hoje eu conto a minha história tendo certeza de que desde o princípio havia uma manipulação que me deixava presa a ele baseada no sentimento de culpa, dívida e inadequação, mas levei muito tempo para perceber isso, para entender que nunca foi culpa minha e que, não importava o que eu fizesse, eu sempre seria culpada. Ele precisava de um culpado que justificasse a sua posição de injustiçado. Depois de alguns anos, eu entendi que o que se passava naquela relação era um jogo sádico. Ele tinha prazer em me machucar porque naquele sadismo perverso havia um certo equilíbrio de forças no qual ele mantinha a verticalização hierárquica daquela relação: eu estava submetida a ele... O casamento é a marca institucional da mulher como propriedade privada do homem, uma vez que, assim como um bem, ela carrega o sobrenome de seu proprietário. Ter conhecimento de que abuso não é amor empodera as mulheres. E quantas mulheres estariam vivas hoje se nós, como sociedade, educássemos os meninos fora da masculinidade tóxica e violenta? Se nós, mulheres, aprendemos a existir entendendo que nosso sucesso na vida se resumiria ao casamento e aos filhos e que, portanto, o nosso objetivo de vida seria ser escolhida por um homem e elevada por ele à dignidade da posição de sua esposa, direcionamos desde cedo todos os nossos esforços em direção a essa meta. Deixamos de descobrir quais são as coisas de que gostamos e passamos a nos perguntar se os meninos vão gostar de nós se nos comportarmos de um jeito ou de outro; deixamos de direcionar nossa capacidade produtiva e criativa para os nossos sonhos e projetos e passamos a destinar uma vida a aprender técnicas sexuais e culinárias para conquistar um homem ou a fazer cursos para salvar o casamento... Além de todo esse contexto que aproxima amor e violência, ainda é necessário discorrer sobre o amor de uma perspectiva crítica, uma vez que na sociedade moderna o amor tem função civilizatória e segregante... Esse monopólio das experiências de afeto a partir da matriz heteronormativa interessa e serve ao patriarcado, pois mantém as mulheres numa ameaça constante da solidão. Nesse caso, a tese do 'antes só do que mal acompanhada' se transforma em seu avesso: antes mal acompanhada do que só. É essa a justificativa que encontramos em muitas mulheres que vivem uma relação fracassada: o medo de ficarem sozinhas e aí sim serem lidas como fracassadas, ou a crença de que todo homem é problemático, então é melhor ficar com aquele que não é tão ruim assim. Há uma extensa e complexa rede que mantém mulheres em relações abusivas, e ela aglutina dependência emocional, psicológica e financeira. Não é possível falar de violência contra a mulher sem falar de sua origem e seu território: a socialização feminina e o campo dos relacionamentos amorosos. Não há uma mulher sequer que nunca viveu, não vive ou não viverá uma relação abusiva. Muitas não saberão identificar que estão em uma; outras sentirão em cada célula do corpo a falta de nutrição afetiva, o peso da violência simbólica e social, mas não saberão nomear como abuso a violência que sofrem, porque ela não é física... As mulheres são usadas como veículos e fantoches na dinâmica da opressão: não fomos nós que inventamos a violência, a obediência ou os padrões de beleza, mas nos convencemos de que eles são óbvios e inerentes ao que significaria 'ser mulher'. Se estamos sem maquiagem, dizem que estamos desleixadas e com aparência de doentes; se estamos maquiadas, dizem que estamos vulgares ou muito exageradas. Há uma quantidade exata de maquiagem que garante um aspecto artificial da feminilidade mantendo o esforço necessário em sua produção e que nos é vendida como algo naturalizado. E assim confundimos artificialidade com naturalidade, assim como confundimos amor com abuso. As mulheres colocam próteses de silicone que prometem um efeito natural, fazem tatuagem nos lábios e nos fios das sobrancelhas buscando uma maquiagem que cubra a pele a fim de manter um aspecto natural. Que natural é esse que não prevê flacidez, manchas, marcas, estrias e falhas? Tudo isso é natural, mas a produção do ideal de beleza colocou tudo que é inato como falha, erro e desleixo e nos entregou o artificial como o real. E assim passamos a odiar a nossa aparência natural e a perseguir o que é vendido como natural (diferente do nosso) e belo... As meninas são estimuladas a brincar de boneca não apenas para desenvolver as capacidades de maternagem que implantarão nelas o que virá a ser a maternidade compulsória, mas para aprender a tratar a si mesmas como tratam as bonecas: um pedaço de plástico inerte que alguém troca de roupa, muda o cabelo e coloca para brincar de casinha. Vamos aprendendo que seguir uma rotina de bonecas humanas, deixando em segundo plano a própria humanidade e autonomia, nos premiará com o amor e a admiração do outro, sobretudo de um homem, uma vez que crescemos com as histórias das princesas que são salvas pelos príncipes e assistimos a romances em que mulheres vivem seu ápice no pedido de casamento e encontram plena satisfação no matrimônio — enquanto os homens se satisfazem com o acúmulo de patrimônio. Passamos uma vida inteira aprendendo o que os homens gostam e o que os homens não gostam, e é isso que modula o nosso comportamento. Homem não gosta de mulher que fala palavrão, homem gosta de mulher bem feminina. Não gosta de mulher de cabelo curto nem de mulher fácil. Homem não gosta de mulher gorda, nem de mulher muito independente, a quem ele lê como agressiva e autoritária... Se duas crianças brincam num parquinho, um menino e uma menina, e ele está com roupas confortáveis e sem o compromisso de manter uma imagem perfeita e inabalável, e ela, por sua vez, precisa arrumar o vestido, ajeitar o cabelo e sentar-se como uma mocinha, não é difícil saber quem vai se divertir mais. Nessa cena, sabemos também quem vai naturalizar mais as quedas e os tombos como parte da brincadeira, afinal de contas pode sujar a roupa e ficar com as pernas machucadas que não será um problema. É diferente das meninas, que não podem se arranhar para não ficarem com as pernas manchadas, e não podem sujar o vestido bonito que a mãe comprou para a princesinha... O homem solteiro é um bon-vivant; a mulher é encalhada. A cena do casamento representa um homem vencido, derrotado com a típica frase game over; enquanto a mulher aparece reluzente e feliz, como se tivesse conquistado o maior objetivo de sua vida... Os furos nas orelhas nos ensinaram a mutilar o corpo em nome da beleza; a cartilha da feminilidade nos ensinou a engolir os incômodos e desconfortos para sermos agradáveis e boazinhas; as brincadeiras de panelinhas e casinha nos ensinaram a cuidar com primor de uma casa; as brincadeiras de boneca nos ensinaram a treinar a maternidade; e as revistas femininas nos ensinaram a enlouquecer um homem na cama: nos tornamos esposas perfeitas! Belas, recatadas e do lar: esse é o objetivo-fim da performance de feminilidade, e assim a juventude e a força de trabalho da mulher são destinadas à manutenção do poderio masculino... Diferente do macho escroto ou do esquerdomacho que costumam se relacionar com mulheres que eles julgam inferiores, seja intelectual ou socioeconomicamente, o boy probleminha só se envolve com mulheres que ele julga superiores: bem-sucedidas, inteligentes, aparentemente seguras de si. Essa escolha se dá porque o boy probleminha precisa se ancorar afetivamente e até mesmo financeiramente na companheira, colocando-a no lugar de uma mãe compreensiva e condescendente... Dentro da perspectiva de amor romântico, vamos fazendo malabarismos a fim de sustentar a promessa do amor a qualquer custo, e disso vem a lógica de que amar é fazer sacrifício e que o amor tudo suporta. Ou seja, eu amo o outro pelo que vejo de mim mesma no outro, mas, se aparece algo que não é o que eu reconheço, que eu não espero ou não desejo, é preciso suprimir, recalcar ou mesmo suportar, em nome da relação. E assim a relação vai se tornando uma entidade maior do que as pessoas e os sentimentos entre elas. Portanto, o amor romântico engendra uma lógica de ameaça: se o outro tem um interesse diferente do meu, ele não me ama; se o outro não gosta das mesmas coisas que eu gosto, ele não gosta de mim. E é assim que as pessoas confundem amor com semelhança, que é uma forma narcisista de operar, na qual se ama a si mesmo... Se para sermos amados é necessário abrir mão do que somos, não é amor, é coação; se para amarmos o outro ele precisa deixar de ser o que é ou ser apenas parcialmente, ou sob condições, aquilo que é, não é amor, é violência... Um relacionamento saudável não significa que todas as partes ficarão felizes e satisfeitas; também não significa que não haverá desencontros, ruídos ou desapontamentos. Um relacionamento saudável é constituído por pessoas bem-resolvidas consigo mesmas, que têm uma vida individual bem delimitada, trabalhada na terapia, independentes financeira e emocionalmente. Pessoas que não buscam a completude numa relação porque já se entendem como indivíduos em paz com suas falhas e ausências estruturais que nada nem ninguém dará conta de obturar. Quando essas pessoas se encontram e o amor surge como um bálsamo que lhes desperta a vontade de ficar mais um pouco, de compartilhar a vida e caminhar juntas, uma relação se torna uma consequência desse encontro potente. São pessoas que estão comprometidas com viver o sentimento que lhes atravessa, não nutrindo qualquer expectativa de algo que dure para sempre ou que as leve para o altar, justamente porque não fetichizam o amor como item de consumo que lhes dará status... É possível que uma relação tóxica evolua para uma relação abusiva, mas em geral acaba explodindo e rompendo rapidamente... As mulheres podem ser tóxicas ou abusivas quando incorporam uma posição que é fruto da masculinidade: o poder..."