Paulo 25/06/2023
O primeiro volume dessa duologia se destacou por ser um projeto nacional escrito a seis mãos por três escritores talentosos: Eneias Tavares, Nikelen Witter e A.Z. Cordenonsi. Os três já conhecidos por quem acompanha o Ficções Humanas. Apresentando uma trama aventuresca em um cenário steampunk baseado no Brasil do século XIX. A maior dificuldade era justamente essa proposta de vários autores escrevendo uma trama comum, ao invés de ser uma coletânea de contos. Na época do lançamento, o romance foi bastante elogiado, principalmente pela criatividade e pela ousadia. O desafio desse segundo livro era fazer algo que trouxesse a mesma ambientação do primeiro, mas de alguma forma subisse o sarrafo. Tendo sido escrito em um período bastante conturbado de nossa história com uma pandemia global e um governo autoritário. Terão eles conseguido? Descubram nas próximas linhas.
Tendo sido enganados pelo Barão do Desterro no final do volume anterior, os membros da agência Guanabara Real agora são perseguidos pela polícia, tendo sido acusados por toda a confusão. Não apenas isso, mas o Barão do Desterro, apoiado por alguns membros da alta sociedade carioca, conseguiu dar um golpe de Estado e se tornar uma espécie de governante vitalício. Em pouco tempo, ele transformou todo o Rio de Janeiro em uma sociedade vigiada, com seres robóticos (fruto de experimentos questionáveis) assegurando a sua dominação. O novo chefe de segurança Shariff está em busca de nossos heróis que vão precisar lidar com seus resultados desastrosos de outrora e reunir coragem para derrotar um poderoso inimigo que conta com o apoio de poderes sobrenaturais. Amizades serão forjadas, segredos serão revelados e decisões serão tomadas no volume final dessa duologia que conquistou nossos corações.
Um dos maiores desafios neste romance é, sem dúvida, a escrita a seis mãos. Vimos no volume anterior o quanto os autores conseguiram criar uma narrativa que a gente via uma certa identidade dos autores presentes nas linhas (isso se o leitor acompanhasse a carreira de cada um), mas que no geral era uma história bastante uniforme. Isso se repete aqui, com os três autores conseguindo transportar suas visões distintas para seus personagens para o romance sem prejudicar a coesão textual. Se isso foi um feito impressionante no primeiro livro, aqui isso está ainda mais acentuado. Duvido muito que vocês descubram quem escreveu que personagem sem consultar a parte final do livro. Nesse sentido as três histórias possuem o clima mais sombrio desse segundo livro em comum; anteriormente éramos capazes de perceber as motivações distintas de cada um e em como isso interferia na abordagem que os autores faziam de cada capítulo. Aqui, o que muda é o que cada personagem deseja para si. O objetivo final da narrativa é o mesmo, mas o caminho que cada um vai traçar para chegar até lá é que vai diferenciar sua jornada.
Podemos dizer claramente que esse livro é fruto do período em que foi escrito. Não sei se os autores tinham uma ideia de como seria o segundo livro após o final do primeiro, mas acredito firmemente que alguns dos planos possam ter mudado muito por conta de uma realidade que nos assombrou durante um período autoritário e de pandemia. Nas linhas do romance, percebemos a indignação dos autores quanto à realidade vivida, a frustração quanto a uma população que comprou um discurso fajuto e a necessidade de encontrar um raio de esperança ao final de tudo. Todos esses elementos são transportados para os personagens, que lutam para se manter em pé, unidos por uma causa comum, mas tendo seus próprios pensamentos quanto ao que estavam vivendo. A gente tinha um tom exótico e brilhante no primeiro livro, com um universo paralelo cercado por dirigíveis e engrenagens. Aqui, temos uma realidade mais suja e cinzenta, com um governo opressor atuando de forma vigilante, com autômatos que parecem versões hediondas de Frankenstein. Para aqueles de nós que tiveram alguma perda durante esses quatro anos de história ou que tinham uma consciência social mais crítica, o livro vai dialogar diretamente com nossos corações.
A dominação do Barão de Desterro passa por um controle de mentes e corpos. Ele visa criar uma sociedade de controle, usando um aparato policial que é destemido e desavergonhado. Através de notícias falsas e alianças espúrias, ele consegue controlar os outros poderes e transferir para si a autoridade de controlar os destinos de um país que havia recentemente obtido a democracia. Retornamos a um autoritarismo que vê em uma figura carismática o potencial deste líder messiânico capaz de salvar o país da corrupção. Percebam como é interessante a maneira como ele deseja usar policiais que não são capazes de pensamento crítico: sua única tarefa é destruir os opositores do regime, não importam os meios necessários. Mas, o Barão é inteligente e não manifesta sua autoridade com tanta clareza. Através do subterfúgio de garantir a segurança e o bem-estar da população, ele lhes tira o direito de ir e vir. Através de uma ordenação precisa, "facilitando" o transporte até o trabalho, ele garante que os indivíduos apenas trabalhem e retornem para casa e assim sucessivamente. Não há espaço para o pensamento livre, para a exploração de outros espaços, para a socialização. Gostaria que os autores tivessem trabalhado mais essa exploração de corpos e mentes. Senti que a ideia era boa, mas a necessidade de se concentrar na história principal tirou a oportunidade de brincar com isso. Nesse contexto em que nos encontramos, daria um bom debate.
Outro ponto que foi abordado e permeou as discussões dos personagens foi o apoio de uma população que não se deu conta de o quanto o Barão era uma pessoa nociva dentro do governo. Todos os seus avanços autoritários foram vistos com normalidade e aplaudidos. Mesmo quando as restrições começaram a se tornar maiores, não houve nenhum tipo de levante popular. Mesmo os contatos dos integrantes da agência se tornaram potenciais inimigos quando a delação passou a ser estimulada em troca de dinheiro e privilégios. É uma crítica a uma sociedade bestializada diante um grupo de pessoas com recursos e poder intimidador que impõe sua realidade aos demais. As poucas vozes dissonantes são caladas pelo sistema repressor e a população apenas cai no mesmo velho discurso. Sem o apoio de ninguém, a tarefa dos três personagens fica ainda mais complicada e isso se reflete em nossa realidade. Se queremos mudar a realidade, se queremos combater os opressores, é preciso apoiar aqueles que se colocam contra. Atirar pedras, criticar, ofender e denunciar é apenas ser cúmplice de um modus operandi que visa usar de uma falsa retórica para se perpetuar no poder. Porque, no enredo, é isso o que o Barão deseja. Líderes extremistas desejam apenas isso: uma sociedade acéfala e a perpetuação de um estado de coisas.
Os autores vão explorar um pouco mais os medos e anseios de cada um dos personagens. Maria Teresa se acostumou a estar nas altas rodas, a agir como uma defensora da justiça, mas paramentada com os artefatos da nobreza. Ao se ver desprovida disso, ela precisa descobrir o que a motiva. Nessa nova realidade, ela precisa sujar as mãos na lama, encontrar forças onde elas não existem, duvidar de aliados e encontrar as respostas nos lugares menos esperados. Por outro lado Firmino descobriu que não está sozinho no mundo. Junto de Joaquina, ele agora tem uma pessoa a quem proteger. Alguém que foi injustiçada por esses mesmos poderes que eles buscam combater. Só que nasce um sentimento no meio de todo esse caos. Mas será certo estar apaixonado por uma mulher que recentemente ficou viúva? Não só isso como o engenheiro terá de deixar sua lógica de lado caso queira realmente entender os planos do Barão. E Remy precisa lidar com a perda de sua amiga diante de uma criatura poderosa. Uma criatura capaz de perverter corpos e almas e que deseja pôr os pés no plano material a qualquer custo. Os planos do Barão envolvem também a construção de um exército mecânico poderoso e que fará Remy se questionar se essa batalha realmente pode ser vencida.
Em termos de impacto esse segundo livro ataca o tema de uma forma diferente. Busca na nossa realidade, a faísca criativa necessária para fazer a história andar. Na minha visão, achei esse segundo volume mais de ideias do que de ação propriamente dita. Só que há um desequilíbrio entre enredo e mensagens a serem transmitidas. Tanto é que o clímax é um pouco corrido. Admito que esperava algo mais apoteótico até porque o final do primeiro livro é épico em escala. Aqui achei mais contido. A escrita é fantástica: se o livro não te dissesse que é uma obra de três autores, o leitor não perceberia. Só isso já eleva muito o patamar de percepção. É um bom livro que usa bem o pano de fundo de um Brasil republicano que havia recentemente sido criado e que não perde a reflexão acerca dos dias atuais.
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