O árabe invisível

O árabe invisível Jacqueline Farid




Resenhas - O árabe invisível


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Alexandre Kovacs / Mundo de K 26/11/2022

Jacqueline Farid - O árabe invisível
Páginas Editora - 210 Páginas - Capa e diagramação: Letícia Ribeiro Ianhez - Foto da Capa de Jacqueline Farid: Floresta dos Cedros de Deus - Bsharri - Lançamento: 2022.

O terceiro romance da escritora e jornalista Jacqueline Farid, O Árabe Invisível, descreve em riqueza de detalhes a viagem de seus personagens por três países do Oriente Médio: Turquia, Líbano e Jordânia, com base nas impressões da própria autora que visitou a região em 2019, fazendo da obra uma deliciosa mistura de relato de viagem com ficção. Os dois protagonistas são a brasileira Soraia, descendente de libaneses, em uma jornada solitária em busca de sua ancestralidade, acompanhada pelo espírito do avô, Youssef, morto há décadas; um fantasma que logo descobre as vantagens e desvantagens da sua nova e peculiar situação no retorno ao convívio dos vivos. Contudo, ele tem uma missão muito importante designada pelo Outro Lado, proteger a neta de um perigo que ambos ainda desconhecem, mas que pode ser fatal para ela.

Alternando a condução narrativa entre as vozes de Youssef em terceira pessoa, normalmente as partes bem-humoradas, com os trechos mais reflexivos de Soraia em primeira pessoa, incluindo os seus comentários sobre as questões de gênero no Oriente Médio que priorizam os homens no que se refere à cidadania e herança familiar, assim como os conflitos e atentados recorrentes na região, Jacqueline Farid consegue estabelecer um ritmo equilibrado que facilita a leitura e o entendimento da trama. Para Soraia, além do reconhecimento de suas origens, a viagem tem o objetivo de atender um pedido da mãe doente: encontrar um tesouro escondido pelo avô, depois de muitos anos trabalhando no Brasil, na sua cidade natal, Bsharri, no Líbano.

"No avião, mais uma vez chama a atenção o ridículo espaço entre a sua poltrona e a da frente, como se o fabricante da aeronave apostasse num encolhimento físico da humanidade. O deslocamento aéreo, ela conclui, é uma alegoria da desigualdade social vigente no mundo: alguns poucos esticam as pernas nas classes elevadas e a maioria pratica o milagre da contorção, enquanto do lado de fora, no espaço gelado, os deuses se divetem. / A Youssef, que mais parece um gigante, não fora dada a capacidade da onipresença reservada às divindades e seu corpo invisível se contorce, inquieto, no assento. Ainda assim, mesmo com limitados poderes, já compreendeu, satisfeito, que tem para si algumas vantagens: pode ver sem ser visto, não precisa ganhar ou gastar dinheiro, não padece de dores físicas nem se sente velho. Tem o poder dos que ultrapassaram a assustadora marca do limite do tempo terreno que só se revela, como surpresa definitiva, na morte. Ele conhece o Outro Lado, desvendara o mistério que é a maior fonte de inquietude dos humanos. / Ah, se eles soubessem, pensa, olhando curioso ao redor, estranhando tudo o que vê, espantado com os pequenos televisores acoplados nas poltronas, intrigado com o aparelho que ocupa a mão e os olhos da neta, que parece em estado de hipnose. Ele chega a se levantar para observar de perto o que tanto entretém Soraia, mas ela subitamente guarda o apetrecho, aumentando o interesse do fantasma." (pp. 8-9)

A Turquia marca o início da viagem de Soraia. Istambul é uma cidade que foi recriada pelos olhos de Orhan Pamuk em alguns romances como O Livro Negro e principalmente na sua autobiografia Istambul na qual a história do autor, prêmio Nobel de Literatura, se confunde com a da cidade, assim como o sentimento chamado de hüzün, a melancolia expressa no eterno conflito entre modernização e tradição. As descrições emocionantes de Jacqueline de alguns pontos famosos do roteiro turístico tradicional, como a Mesquita Azul, Hagia Sophia, Ponte Galata e a visão do Bósforo, assim como as dificuldades com a língua local e os costumes, valorizam o texto. Voltando à ficção, Youssef percebe que a neta está sendo seguida por um homem misterioso, sinal de perigo.

"Contemplo a Mesquita Azul, com a qual me deparei nas proximidades do hotel, cruzando a praça a caminho da cisterna. É o primeiro dos monumentos de Istambul que admirei em fotos e me vejo frente a frente agora. A construção imponente me faz me sentir minúscula diante da força da religião, da fé, das crenças e dos templos. Esses minaretes estão cravados no chão, como lanças que têm o céu como alvo, há centenas de anos, e provavelmente estarão aqui muito depois que eu tiver encontrado a morte. / Me alegro ao pensar que em breve vou conhecê-la por dentro, embora tenha um pouco de medo de mesquitas e possíveis explosões terroristas. Meu raciocínio ocidental vinculou uma coisa à outra e a realidade raras vezes é suficiente para se sobrepor ao temor que imprime uma camada de sombra sobre a luz de todas as coisas. / Para mim o Oriente Médio e mesmo a sua borda, como Istambul, sempre foi sinônimo de guerra. Como viajante, arrasto o peso do medo comigo e ele pousa sobre tudo, mas não impede o maravilhamento. Nunca vou tão a fundo nos sentimentos, penso mais sobre eles do que sinto. O pensamento é meu amortecedor natural para emoções que, sem esse filtro, me arrastariam como uma tormenta. " (p. 21)

Na chegada ao Líbano, no aeroporto de Beirute, o espião que seguia Soraia em Istambul se apresenta como Elias, um primo desconhecido, indicado por outro primo. O seu avô Youssef está certo de que este homem representa a ameaça à integridade da neta que ele precisa defender. Os pontos turísticos, costumes e a culinária do Líbano são descritos também em muitos detalhes: Gruta de Jeita, Byblos, ruínas de Baalbek, até chegar na cidade natal de Youssef, Bsharri, que abriga os Cedros de Deus no norte do Líbano, mesma cidade onde nasceu o escritor e poeta Khalil Gibran o qual, agora também invisível, estabelece contato com Youssef ajudando-o na sua missão terrena.

"Sozinha, livre, caminhando pela rua, eu, que tinha medo do Oriente Médio, que acreditava que uma bomba explodiria sobre a minha cabeça já no aeroporto, que ouvi tantos casos de pessoas que vieram passear e não conseguiram retornar porque fecharam o país em uma guerra, que desde criança escutei sobre parentes escondidos em porões de casas, com fome, esperando o fim dos bombardeios, agora tenho ciúme do Líbano, quero que seja mais meu que de outros. / Experimentei essa sensação nos passeios em grupo, onde todos reivindicavam suas raízes, enquanto eu, silenciosamente, fazia as contas de quantos parentes nasceram nessa terra, com vontade de gritar que o Líbano é mais meu do que deles. / Vim aqui carimbar a nacionalidade que oficialmente me é negada, já que sou filha de mulher nascida do ventre de uma libanesa, e não de um homem. É uma punição institucional de gênero que ultrapassa as fronteiras do Oriente Médio, impedindo que eu faça do papel a minha aliança. / O que me trouxe até aqui, porém, vai muito além das leis dos homens. Há outros rebeldes, como o próprio Gibran, que gritou, com sua escrita, pelas mulheres, ou até mesmo o meu avô que, mesmo cioso de todas as tradições, mesmo machista, mesmo temperamental e de uma rigidez infinita, permitiu que minha mãe, sua filha mais velha, sua pérola, escolhesse um homem sem sangue da família, sem raiz oriental, para o casamento." (p. 103)

A última etapa da viagem, antes do retorno ao Líbano, é a Jordânia onde visitam o deserto de Wadi Rum com a sua coloração avermelhada, no caminho para Petra, uma cidade histórica e arqueológica localizada no sul da Jordânia, famosa por sua arquitetura esculpida em rocha. Neste ponto da narrativa já se consolidou uma estranha relação amorosa entre Soraia e Elias, apesar da frustração de Yossef que não consegue se comunicar com a neta para alertar sobre o perigo que representa o pedido de casamento de Elias, interessado apenas no tesouro da família que ela veio encontrar no Líbano. Um livro muito recomendado para os leitores que gostam de viajar, com muitas referências à literatura e cultura locais, ótimo entretenimento.

Sobre a autora: Jacqueline Farid é escritora e jornalista nascida em Itabirito, Minas Gerais, mas escolheu o Rio de Janeiro para viver. Publicou os romances “No Reino das Girafas” (Ed. Jaguatirica, 2017), retrato cru de um casal em crise em meio a um safári na Namíbia – semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura 2018; “Prana” (Páginas Editora, 2020), filha ilegítima que voa de Ouro Preto, Minas Gerais, para um reencontro com o pai em Varanasi na Índia; e “O Árabe Invisível” (Páginas Editora, 2022), escrito a partir de viagem ao Líbano, Istambul e Jordânia realizada em 2019.
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Paty 30/03/2024

Mas afinal, o que é literatura de viagem?
Trechos da resenha
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[...] em todas as sociedades nas quais as viagens coincidiram com a escrita, os relatos de viagem estiveram presentes. [...] (Fonte 360 meridianos)

A narrativa da literatura de viagem é interdisciplinar, trazendo informações históricas, antropológicas e até mesmo econômicas. Algumas podem ser bastante descritivas, mas os autores que trabalham com a narrativa ficcional propõem mais leveza aos leitores ao apresentarem os costumes, crenças, culturas, características e povos por meio das personagens, do enredo e construção do espaço e tempo.

O livro mais recente da autora Jacqueline Farid ? O Árabe Invisível ? tem esta linha de narrativa, assim como os seus anteriores. Misturar ficção com uma experiência de viagem é uma marca da autora.
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?Todo o medo que sente do Oriente Médio ? da língua ininteligível, dos costumes desconhecidos, das religiões que determinam os destinos, das guerras que parecem cessar apenas enquanto esperam a chance de retornarem mais resolutas ? terá que se transformar em coragem? (p. 8)

O livro começa com um suspense ou, para os entendidos, com uma narrativa um pouco sobrenatural. Líbano, mais exatamente Vale do Kadisha, Bsharri, uma maçã voadora com um metal na frente assusta o zelador que aprecia com tranquilidade a natureza em Bsharri.
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Douglas | @estacaoimaginaria 27/12/2023

Uma história surpreendente
Esse foi meu segundo contato com a escrita de Jacqueline Farid e, mais uma vez, me surpreendi positivamente. O romance não é dividido por capítulos, pelo menos não de maneira tradicional, mas é dividido entre as perspectivas de Soraia e de Youssef. Com zero diálogos, é uma história bastante descritiva. Contudo, é uma escrita dinâmica da autora, o que agrada bastante para quem lê.

Mas, ao mesmo tempo, é uma leitura densa, que demora a passar, o que não é necessariamente um problema. Pois é através de ambos os protagonistas que nos infiltramos na cultura e arquitetura árabes, de tão bem descrito que é toda a geografia por onde Soraia passa. É um livro centrado nas raízes e tradições libanesas e mantém uma certa coerência de seu outro livro, “Prana”.

No entanto, acho que a escrita da autora é bem equilibrada entre densidade e leveza. Isso porque ela cria um mistério que envolve a trama e a missão de Soraria e do avô, mas também consegue trazer uma narrativa leve e descontraída, principalmente em relação a Youssef e como ele se surpreende com esse mundo moderno. São pequenas “coisas”, mas que no fim completam a história.

O que acho que ajuda na leitura é esse aspecto mais fantasioso de Youssef. Essa linha mais sobrenatural tem um desenvolvimento interessante. Além disso, da parte dele, temos uma coisa muito saudosista. Ou seja, Soraia está conhecendo a cultura desses países, enquanto Youssef faz uma viagem ao tempo. Então, vai além da geografia, é todo o conceito cultural, de manias, tradições, modo de viver, gastronomia, enfim, uma verdadeira viagem.

Dentro desse ponto, o livro tem muito dessa coisa de ancestralidade e de tradição. Além disso, Jacqueline traz importantes discussões sobre família, tradições, dinheiro, fazer o que é certo. Isso enquanto nos aprofundamos numa cultura rica (tal qual o vocabulário de Jacqueline) e quase desconhecida para nós. Jacqueline dá vida, através de uma bela e poética escrita, a essa cultura.

Aos poucos, a autora nos encaminha para uma conclusão melancólica e surpreendente. É algo que está ligado à nossa realidade, inclusive, o que acaba por aproximar o leitor da história ainda mais. Já destaquei isso outra vez, mas tudo se torna ainda mais intenso quando nos lembramos que a autora se baseou em suas próprias viagens para construir essa história. E, novamente, consegui com Jacqueline Farid uma viagem quase real a essa cultura.

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