Flávia Menezes 13/09/2023
COMO DISSE JENNETTE: ESTOU FELIZ QUE A MINHA MÃE MORREU.
??CONTÉM SPOILERS??
Não. Eu não me enganei no livro. E eu sei que essa não é a autobiografia que a ex-atriz do canal Nicklelodeon, Jennette McCurdy, escreveu sobre a sua história de vida ao lado de uma mãe narcisista. Mas até que poderia ser...
?Holly?, o mais novo romance policial do mestre do terror Stephen King, acaba de ser lançado mundialmente (05/09/2023), e traz mais uma história da protagonista mais amada pelos seus Leitores Fiéis: Holly Gibney.
Preciso confessar que nunca compartilhei dessa paixão por essa personagem, até porque a minha preferida é a Gwendy. Mas desde que li o conto ?Com Sangue?, percebi o quanto sua evolução tem por trás uma mensagem tão bonita, tão significativa, que a chama da empatia foi (enfim!) acesa dentro de mim.
Uma outra confissão que aqui eu também faço, é que eu gosto muito mais do ?King raiz?, que tinha aquela escrita que era pura poesia com uma pitadinha macabra do terror, que foi o que me fez me curvar ao mestre diante de ?O Iluminado?. Sendo assim, não posso negar que esses romances policiais mais modernos dele, por mais bem escritos que sejam, nunca me chamaram tanta atenção.
Só que quando você começa a ler esse livro, vai ver que gostando ou não da Holly, ou sendo fã ou não de romances policiais, ?Holly? é uma história totalmente à parte, porque o trabalho de construção da trama e dos personagens feito pelo King com tanto amor e cuidado, é algo que só um mago da escrita, um gênio das palavras como ele poderia fazer.
Não há como falar dessa história (pelo menos não o que eu preciso dizer), sem citar algumas partes, e por isso mesmo que eu me senti no dever de alertar sobre os spoilers, pois eu não gostaria de estragar a sua experiência com essa leitura. Mas se depois de ler, puder voltar aqui um pouquinho... eu gostaria mesmo de poder compartilhar com você o que eu tenho aqui para lhe dizer sobre a mensagem por trás da história.
Alertas feitos... agora sim... vamos lá!
Em setembro de 2022, Stephen King lançou um romance de fantasia chamado ?Contos de Fadas?. Em sua autobiografia, o mestre falou sobre sua grande paixão por esse tipo de história, mas para quem leu esse livro, sabe bem que ele não foi tão feliz assim em trazer os elementos que fazem com que uma história se enquadre naquele famoso ?Era uma vez...?. Porém, sabe o que é mais curioso? É que aqui, em ?Holly?, ele conseguiu trazer esses elementos com perfeição!
Logo nas primeiras páginas, eu ia sentindo a referência ao conto de ?João e Maria?, mas ainda não imaginava que o King se utilizaria dele de forma tão brilhante! Isso me deixou em êxtase com essa história, e eu fiquei me perguntando se o King fez isso de forma proposital, ou se tudo não passou de um feliz acidente!
Quando trago o conto do João e Maria?, e faço uma ligação com a autobiografia da Jennette, ?Estou feliz que minha mãe morreu?, é porque a história por trás da história vem falar sobre algo que vem sendo muito discutido atualmente, muito embora ainda seja um assunto que ninguém gosta de falar: a toxicidade materna.
Quando se é criado por uma mãe narcisista, uma das maiores dificuldades é fazer com que as pessoas criadas por mães ?normais? entendam o quanto passar por essa tortura psicológica a sua vida inteira, sofrendo em silêncio, porque todos sempre pensam que você está exagerando, é algo profundamente doloroso.
O ?Transtorno de Personalidade Narcisista? é real, mas é preciso entender que não existe uma ?cura?, pois se trata de uma pessoa com uma visão de mundo distorcida, onde ou ela é sempre o centro do universo, e o restante do mundo é formado apenas por figurantes que estão no mundo para idolatrá-la (narcisismo grandioso), ou ela é uma grande vítima, e todos ao seu redor são perseguidores injustos que estão apenas tentando destruí-la (narcisismo vulnerável).
Mas o que as mães narcisistas têm a ver com ?João e Maria??
No caso desse conto de fadas, os dois irmãos são pegos em flagrante comendo a casa de uma bruxa malvada, que os aprisiona e os alimenta para devorá-los depois. E é exatamente aqui que essa fusão entre ?João e Maria? e a autobiografia da Jennette acontece.
Nos contos de fadas, as bruxas más são a parte da figura materna que não atende aos nossos insistentes pedidos, pois isso nos ensina que nossas mães não existem apenas para satisfazer todos os nossos desejos, mas sim para nos repreender, quando errados, ensinando o melhor caminho, nos ajudando assim a crescer e sermos mais independentes.
É como naquele desenho animado, ?A Caverna do Dragão?, onde o ?Vingador? era na verdade a figura paterna que impulsionava aqueles cinco garotos a crescer e ser mais independentes. De fato, os verdadeiros vilões mesmo, aqueles que impediam o crescimento deles, na verdade eram o Mestre dos Magos e o unicórnio Winnie. Mas essa é uma outra história...
Já no caso desta história, a bruxa má é uma velhinha chamada Emily Harris, professora universitária que ensina literatura inglesa, e é casada com um biólogo e nutricionista lunático, Rodney Harris, que defende o poder do consumo de carne como uma fonte para a tão almejada eterna juventude.
E é nesse ponto que vemos o brilhante trabalho do King na concepção dessa personagem/vilã, a Emily. Ela é a bruxa má, que assim como acontece nos contos de fadas é polarizada unicamente para o mal (não existe uma grama de bondade nela), porém que se difere da bruxa de ?João e Maria? porque ela não surge para promover um crescimento pessoal e a individuação. Aqui, a situação é bem diferente!
Junto com o seu marido (que é a figura perfeita do pai ausente e sem muita força na relação, perfil exato de quem se une a uma mulher narcisista), Emily pratica o canibalismo, se alimentando tanto de homens quanto de mulheres saudáveis e com grandes talentos, para assim manter seu vigor, saúde e jovialidade. Quer uma forma melhor de usar a simbologia para trazer à tona o narcisismo materno?
Porque é exatamente isso que uma mãe narcisista faz: ela devora os seus filhos! Até mesmo porque ela os vê não como um indivíduo separado dela, mas como uma extensão de si mesmas já que os seus filhos são suas posses, suas propriedades e elas fazem o que querem com eles porque eles lhes pertencem.
Uma das primeiras coisas que a toxicidade materna ataca são os talentos dos filhos. Uma mãe narcisista nunca irá apoiar seus filhos, porque ninguém no mundo pode ser melhor do que ela. E por isso mesmo é que ela sempre os fará duvidar de si mesmos, fazendo com que acreditem que não sejam realmente tão bons assim. Afinal, se é a sua mãe, a pessoa que mais deveria te amar no mundo, que está dizendo isso... você iria duvidar do que ela diz, ou discordar?
E essa dúvida que é fruto do abuso psicológico dessa relação parental tóxica, King mostra com perfeição nesse livro quando Barbara Robinson, a irmã de Jerome e melhor amiga de Holly, conversa com a sua mentora, Olivia Trelawney.
?? Sim. Foi a professora Harris que sugeriu a mudança de ?esse é o jeito? pra ?é assim?. E eu mudei.
? Por que achou que a versão dela do verso era melhor? (...)
? Eu achei na hora, mas...
? Mas agora não tem tanta certeza. Sabe por quê? (...) Sua versão é poesia. A de Emily é prosa.?
Olivia é a mãe-boa. Ela é como uma instrutora de direção que acredita que o aluno tenha aprendido todas as coordenadas que lhe foram passadas a ponto de ser capaz de dirigir sozinho. Já Emily é aquela que não só não confia, como tira a direção das mãos do aluno.
E essa é a diferença entre a mãe boa (Olivia) da mãe má/tóxica (Emily). Enquanto uma acredita no talento das pessoas e as motiva a seguir adiante apontando o caminho, mas deixando o outro livre para buscar por si uma forma de trilhá-lo (Olivia), a outra é a que não apenas despreza o talento das pessoas, como, não contente, precisa devorá-las porque precisa destruí-las, aniquilá-las porque todos os talentos precisam ser parte dela (Emily).
Nessa temática da toxicidade materna, um fator em comum em cada personagem que vinha de uma relação com uma mãe narcisista (incluindo a Holly), é que todas passam por algum tipo de abuso/violência psicológica. Não sei se o King fez algum tipo de pesquisa que evidenciasse esse tipo de padrão, mas não é algo que seja via de regra. Porém, é fato que filhos de mães narcisistas são muito mais propensos a se envolver em relacionamentos abusivos, exceto se buscarem por ajuda psicológica que os auxilie a sair desse tipo de padrão de relacionamento (abuso x codependência).
?Holly? é uma verdadeira obra prima, e além de trazer com tanta propriedade essa temática polêmica da toxicidade materna, ele ainda prende a atenção por todo o suspense da trama, que preciso dizer, me deixou bastante apreensiva do começo ao fim a ponto de não conseguir desgrudar os olhos do livro.
E muito embora o King não seja tão bom com finais, esse é daqueles de deixar o coração quentinho! Porque a mensagem final é algo que podemos levar para a vida.
Depois dos Brady Hartsfield, Morris Bellamy e Chet Ondowsky, esse casal de velhinhos serial killer se revelaram ser pior do que todos os outros juntos! Porque como o King reflete ao final do livro, eles eram pessoas reais, e não alguém com algum tipo de poder sobrenatural.
De fato, o que mais assusta nessa vida é ver como uma pessoa igual a qualquer um de nós, pode cometer atos tão cruéis e tão maldosos, a ponto de ferir e machucar alguém (seja física ou psicologicamente).
A maldade habita em cada um de nós, mas ela só vai crescer se a alimentarmos. Se sinto mágoa, e todos os dias eu a alimento, ela certamente crescerá. Assim como se eu escolho alimentar o amor, é ele que irá crescer cada dia mais. Então, se quiser mudar um sentimento negativo por outro, você precisa parar de agir como está agindo, e se conscientizar de que todos os dias precisará vencer o orgulho para ter um gesto de amor com aquele a quem gostaria mesmo de ferir.
Cada vez que eu silenciar um sentimento ruim (mágoa, raiva, orgulho), e for oferecendo algo bom (amor, carinho, compaixão), mais e mais eu vou perceber o quanto a minha mudança surpreenderá o outro, e o fará também agir com amor por mim. Afinal, se eu semeio amor, não há como colher outra coisa além de amor!
Emily era a bruxa má/mãe narcisista porque dentro dela imperava o sentimento de inveja, de mágoa, de orgulho, de vaidade, que são os estímulos certeiros para que o ódio cresça e se transforme em maldade. E a cada pessoa que ela decidia aniquilar (e devorar!), mais o seu desejo de ofender e ser cruel com o outro aumentava. Porque é isso que o mal faz dentro de nós: ele cresce a cada ato de maldade e crueldade que direcionamos ao outro.
Assim como Jennette, Holly também amava a sua mãe (Charlotte). E assim como Jennette, a morte da sua mãe, apesar de lhe causar dor, também lhe trouxe um sentimento de alívio.
Assim como quando foi presa por Emily em uma jaula, Holly se sentiu frágil e exposta à crueldade de Emily, era assim que ela se sentia na jaula (psicológica) que a mãe a aprisionava, deixando-a frágil e exposta às suas (cruéis) vontades. E muito embora ela tenha enfrentado ambas, e ambas não estejam mais vivas, Holly nos conscientiza de como essas relações abusivas deixam marcas profundas para a vida toda. Porque para um narcisista não existe perdão e nem reparação .
E para finalizar essa resenha com a parte da mãe-boa, eu deixo uma das frases mais belas ditas por Olivia à sua jovem pupila Barbara:
?? Isso aqui não é psiquiatria. ? diz Olivia. ? Não é terapia. É poesia, minha querida. O talento estava aí antes de coisas horríveis acontecerem a você, veio com o equipamento original, assim como o do seu irmão, mas talento é um motor morto. Ele funciona à base de todas as experiências não resolvidas, todos os traumas não resolvidos, se preferir, da sua vida. Todos os conflitos. Todos os mistérios. Todas as partes profundas da sua personalidade que você acha não só incômodas, mas repugnantes.?
Obs.: desculpa ?Duma Key?, mas com tudo o que foi dito acima, preciso realocá-lo ao Top 5, pois ?Holly? agora conquistou o meu Top 4. ???