Júlia 30/08/2024
Com a coragem e as palavras sábias de Wendy Mitchell
Wendy Mitchell era uma ativista pelos direitos das pessoas com demência. E convivia com essa doença. Só esse fato já nos convida a olhar mais detidamente para a demência, e admitirmos que não sabemos muito sobre o tema.
Me emocionei várias vezes durante a leitura, primeiro por alguém que amo que convive com a doença e depois pela própria Wendy. Acho que escolhi bem, porque entre os tantos livros sobre demência que poderia ler, escolhi um que compartilha o que as pessoas que convivem com ela tem a dizer. O livro contém muitas “soluções”, recursos buscados e desenvolvidos por Wendy e outras pessoas com demência para lidarem com a doença, que podem inspirar muitos leitores.
As muitas nuances da vida de Wendy com o diagnóstico são capazes de ampliar muito nossa visão sobre o tema. Por exemplo, eu não sabia que a demência (como é ruim de ficar repetindo essa palavra!) pode gerar alucinações olfativas. Ou alterações na percepção do espaço. Inclusive, Wendy foi consultora de pessoas que buscavam adaptar ambientes para serem mais adequados para quem vive com demência.
Acho que independente dos desafios que enfrentarmos na vida, a forma como Wendy vive com a demência é inspiradora. Quando não consegue mais amarrar os sapatos, compra sapatos sem cadarços; participou de muitas pesquisas, deu palestras, escreveu livros, participou de grupos de pares, escreveu um blog, enfim, não deixou que a demência ditasse como seria sua vida, mas driblou ela muitas vezes, mantendo-se uma pessoa ativa social e intelectualmente. Ela decidiu ouvir pessoas, tanto as que estavam em estágios mais avançados que o seu quanto cuidadores, informar-se através de pesquisas, e encarar de frente o problema; a própria Wendy diz que essa é só uma das muitas formas de enfrentamento, e que não existe uma forma melhor do que a outra, mas não deixa de ser admirável, porque denota sua coragem e determinação.
Apesar de tratar de um tema pesado, que muitos de nós evitam entrar em contato enquanto podem, ou precisam de um tempo e um incentivo extra para fazê-lo, a leitura é muito fluida, leve, com partes divertidas e esperançosas. Os relacionamentos com os filhos, entre casais, suas sutilezas e novos problemas depois de um diagnóstico de demência são abordados de forma sensível. Pede-se o mesmo olhar sensível dos profissionais: que não usem termos pesados, que falem da possibilidade de uma vida com a demência, e não apenas do fim da vida ocasionado por ela, que continuem acompanhando os pacientes e auxiliando-os a ter qualidade de vida. Se não souberem como fazê-lo, que aprendam com pessoas como Wendy!
Enfim, Wendy abre parte da sua vida generosamente para os leitores, fala sobre quem era antes do diagnóstico e através da escrita mantém seu senso de identidade, que ela diz ser tão importante para as pessoas com demência. É preciso uma personalidade forte e independente para não permitir que outras pessoas assumam o controle da sua vida quando se tem demência, e, pelo que transparece no livro, Wendy era assim antes da demência e continua sendo depois. Ou seja, é a mesma pessoa, apenas com novos desafios.
A relação de Wendy com a escrita é incrível, é uma forma de dissipar a névoa que sente em sua mente. Para finalizar, destaco dois trechos que ilustram perfeitamente a sabedoria que conseguia transmitir com as palavras:
“Falei algumas vezes sobre as duas estantes nas quais as pessoas que vivem com demência guardam as memórias. Há a estante factual, que é frágil e oscila de um lado para outro com a doença, fazendo com que os livros tombem para as prateleiras erradas - misturando memórias, anos e pessoas. E há a mais sólida ao lado, a estante emocional. Talvez eu tenha me esquecido de que nada é capaz de abalá-la. Ela é o lugar em que ficam as memórias mais significativas e abriga as prateleiras daqueles que mais amamos, que nos fizeram mais felizes e cuja perda sentimos mais profundamente.”
“Como você pode ver, a felicidade, para mim e muitos dos meus amigos, envolve a atenção plena e a apreciação do momento presente, porque o passado frequentemente é um borrão e o futuro é incerto. Entretanto, será que algo realmente mudou? Não deveríamos todos viver no presente? O problema é que perdemos a prática. Pense em quanto prazer uma criança sente ao examinar uma concha minúscula na praia: nada a distrai dessa tarefa. Ao crescermos, porém, perdemos o hábito de focar uma coisa de cada vez e deixamos que o desejo por outras estrague o que estamos vivendo no momento. Nós nos concentramos no que falta, não no que temos. Mais que tudo, a demência me ensinou que precisamos retornar ao agora”.