Gabriel 03/04/2024
Uma fortaleza de cal erguida contra a morte
"Essa é uma história sobre encontro com a morte e reencontro com a vida" foram as palavras que o Rui Couceiro escreveu para mim na dedicatória da edição que adquiri com ele na bienal de 2023. Gosto desse tipo de autógrafo que é tão automatizado para ser funcional a um montante de leitores adquirindo cópias, mas ainda consegue imprimir certa intimidade, pois ainda foi sua mão que escreveu e deixou uma marca no papel que seguiu comigo. Um resíduo do nosso minúsculo encontro que perdurou muito depois.
Baiôa sem data para morrer é um livro que encapsula essa perseverança de encontrar artifícios que triunfem sobre o tempo e a morte. O protagonista que nos conta essa saga é um quase não indivíduo, sem nome, sem muitos aspectos além de uma insônia avassaladora que o levou a tentar métodos não ortodoxos como se mudar para a antiga casa restaurada que sua mãe viveu na infância num vilarejo afastado no Alentejo de Portugal.
A busca por um ambiente ermo chegou a ele como uma solução amena, desavisado da intensidade de vida que seria possível se depar com em uma aldeia remota onde seus poucos reminescentes são pessoas idosas em diferentes graus de aproximação com o próprio fim. Joaquim Baiôa é o homem que restaurou a casa de sua família e segue numa odisseia para revitalizar toda a comunidade, casa por casa, cal por cal, tábua a tábua, de modo a tornar a região convidativa para novos moradores.
O que Baiôa faz e o protagonista entende é uma cruzada contra a inevitável extinção daquele povo e sua memória. Ele laboriosamente vai reconstruíndo cada centímetro de uma vila que tem cada vez menos pessoas para habitar, sofrendo por atencipação ao ter sido presenteado com a herança de um excêntrico médico que viveu ali por um tempo e lhe legou, dentre tantas coisas, um documento escrutinando cientificamente a possível dada de morte de cada morador dali. Exceto a data de Baiôa, agora atormentado tanto com uma informação proibida quanto pelo medo de que talvez nunca venha a morrer e só reste ele ali de pé no meio dos escombros.
Enquanto se junta nessa empreitada, o protagonista vai absorvendo as histórias inúmeras desses personagens que habitam a vila, nela plantaram sua história e dela colhem seu último leito. A grande maioria inventa fantasia e ficções para passar o tempo, se entretem com a fofoca, se ludibria com fantasmas e contempla o canto da fadista de noite quando ela não estava aos amores com outro homem. Se dilata por aquelas casas abandonadas múltiplas possibilidades de vida que vão inundando os olhos curiosos e invasores do nosso narrador.
É claro, assim como as datas estão anunciadas e a dupla de trabalhadores opta por não intervir, sabemos que aquele vilarejo está com os dias contados, que a morte é tão inescapável para as cidades quanto para as pessoas. A morte não é uma informação distante de estatística televisiva, mas um acontecimento avizinhado, na próxima esquina. É preciso encará-la de frente enquanto se frente. Há mortes acidentais, fulminantes, trágicas, improváveis (uma família inteira morrendo de combustão espontânea), deliberadas. Mas por mais pesaroso que seja, o texto do Rui Couceiro opta por uma ótica muito menos lamuriosa, entendendo a naturalidade daqueles eventos e provocando sentimentos contraditórios ao terço final, onde grande preocupação de Baiôa é empurrar o protagonista para experimentar a vida de outras formas, levando-o a encontrar uma mulher por quem se inunda de esperanças e futuros.
Assim, o próprio protagonista trafega numa certa culpa de estar, ao mesmo tempo, cheio de vida e morte, otimista por toda vida que virá e sentido pela morte que não pôde evitar até um fim derradeiro que só poderia ocorrer pelas suas mãos. Desse vilarejo em Gorda-e-Feia, tão maltratado pela erosão, mas tão bem cuidado pela memória, ao final, a grama rasga os azulejos, abraça as paredes e desmonta a civilização. Ali vão se criar ninhos, alimentar filhotes e desabrochar cores na próxima primavera. A vida é consequência direta da morte.