Ana Lícia - @livroedelirio 20/07/2023
Conheci a escrita da Rute através do seu livro de contos “A estranha mania das abelhas”, que se tornou um favorito por aqui. Em seu primeiro romance, Bordado em ponto corrente demonstra que independente do gênero, Rute possui uma enorme potência em encantar e prender a atenção do leitor.
Bordado em ponto corrente se passa em 1967 no interior do nordeste, na cidade fictícia de Santana da Solidão. Apesar de ser um povoado invisível e fantástico, me senti como uma leitora onipresente, acompanhando os personagens e suas caminhadas tristes e angustiantes.
Neste livro, há um personagem fundamental: o Rio das Almas, um curso de água que exige sacrifícios para continuar vivo. Entretanto, ele seca por justiça quando uma mulher é encontrada morta e é retirada do rio.
A podridão que marca o rio é de morte, uma vez que corpos apareceram a céu aberto ao longo da cidade. Porém, o pequeno vilarejo também mascara outro tipo de podridão: a dos vivos, cercada de violências, abusos físicos, sexuais e psicológicos. Em um trecho, a narradora descreve que “O povoado estava se acostumando à podridão”, e eu me questiono, qual?
É notório que Santana da Solidão estava se acostumando com as violências e agressões vindas de um homem extremamente bárbaro e cruel. Quantas vezes nós silenciamos as vítimas? Bem, fica o questionamento.
Bordado em ponto corrente é narrado por moiras, mulheres responsáveis pelo destino dos seres humanos, e, assim como o título, a narrativa faz referências à tecelagem e fios, como se a nossa vida fosse uma linha e pudesse ser cortada agora. E de fato, a nossa existência pode cessar a qualquer instante.
Bordado em ponto corrente é um livro potente e real, e pude sentir as angústias das personagens, a violação dos seus corpos e a hipocrisia de uma sociedade, como se tudo isso estivesse acontecendo comigo. Foi sufocante, e por isso tive que pausar a leitura na metade para poder respirar. No entanto, este livro também fala sobre relações familiares, machismo, abuso de poder, cristianismo, amor e aromas. Ah, falando em aromas, eu adoro quando um livro me permite sentir cheiro de chá, limão e de odores do interior - e isso aconteceu.
A narrativa da Rute te transporta para dentro do livro, e, de forma cruel misturada com realismo mágico, ela te ganha.
Nessa resenha eu não citei nomes, acho que estragaria a sua experiência de leitura. Mas espero ter passado todo o sentimentalismo que vivi lendo esse romance.