Alexandre Kovacs / Mundo de K 23/04/2024
B. Traven - O navio da morte
Editora 7Letras - Selo Imprimatur / Quimera - 320 Páginas - Tradução: Érica Gonçalves Ignacio de Castro - Posfácio de Alcir Pécora - Lançamento: 2024.
Em uma época na qual nossos dados pessoais, assim como as múltiplas informações que compartilhamos nas redes sociais, tornam o anonimato algo praticamente impossível, chama a atenção o caso da biografia de B. Traven, pseudônimo de um romancista, supostamente alemão, cujo nome verdadeiro, nacionalidade, data e local de nascimento são todos imprecisos e sujeitos a disputa. O que se tem como razoavelmente certo é que Traven viveu durante anos no México, onde também se passa a maior parte de sua ficção – incluindo O tesouro de Sierra Madre (1927), cuja adaptação cinematográfica resultou em três Oscars. Sua obra de caráter panfletário, sobretudo O navio da morte, demonstra uma orientação anarquista e uma ferrenha crítica ao capitalismo.
O navio da morte foi publicado originalmente em alemão em 1926 e em inglês em 1934, tendo como base as aventuras e, principalmente, desventuras de um marinheiro norte-americano sem qualificação técnica, empregado nas operações de alimentação da caldeira, uma das funções de maior risco no navio, sendo, portanto, um operário em uma rara posição de protagonista e herói condutor da narrativa, pouco usual nos romances deste período. O autor, sempre em tom farsesco e bem-humorado, destaca as exigências burocráticas para o controle dos cidadãos e a política na Europa após a Primeira Grande Guerra, querendo demonstrar como a pretensa conquista da liberdade é ameaçada paradoxalmente pela burocracia estatal e o controle das fronteiras nacionais.
"Segundo-oficial, eu? No, Sir. Nessa banheira, eu não era segundo-oficial. Mas um simples marujo, um trabalhador muito humilde. Sabe, senhor, quase não há mais marinheiros, e eles também já não são mais necessários. Um cargueiro tão moderno não é mais um navio legítimo. É uma máquina flutuante. E mesmo que o senhor não entenda nada de navios, certamente não acredita que uma máquina precise de marinheiros. Essa máquina precisa de operários e engenheiros. Até o skipper, o capitão, é hoje apenas um engenheiro. E mesmo o timoneiro, durante muito tempo considerado o marinheiro por excelência, hoje não passa de um simples maquinista. Ele apenas aciona a alavanca que direciona o servomotor. / O romantismo das histórias de marinheiros ficou o passado. Aliás, pra mim, esse romantismo nunca existiu. Nem em relação aos barcos à vela, nem ao mar. Esse romantismo era fruto da imaginação daqueles que escreveram sobre o mar. Essas falsas histórias levaram inúmeros bravos garotos para uma vida e um lugar onde pereceriam física e mentalmente, porque tudo o que traziam consigo era a crença pueril na honestidade e veracidade daqueles escritores. Pode ser que, para capitães e timoneiros, tenha havido algum romantismo. Para a tripulação, jamais. O romantismo da tripulação sempre foi trabalho duro, desumano e tratamento animal. Capitães e timoneiros aparecem nas óperas, nos romances e nas baladas. Mas o hino à glória do herói que faz o trabalho duro nunca foi entoado. Esse hino seria brutal demais para despertar a vontade de entoá-lo. Yes, Sir." (pp. 10-11) - Trecho do Primeiro Livro
O romance está dividido em três partes ou livros. Na primeira, o marinheiro Gales perde a saída do seu navio Tuscaloosa no porto de Antuérpia na Bélgica. Sem documentos para provar sua origem e conseguir embarcar em outra embarcação, ele fica à mercê das autoridades que o fazem circular pela Europa em uma busca kafkiana para obter algum passaporte, mesmo que de outra nacionalidade. No segundo livro, o protagonista é admitido no Yorikke, um navio sem condições mínimas de segurança do trabalho. No último livro, ocorre o alistamento forçado do protagonista em um terceiro navio, o Empress of Madagascar, condenado ao naufrágio, juntamente com sua tripulação, pela própria empresa de navegação como forma de obtenção do valor do seguro.
"É claro que eu posso trabalhar aqui. Outros também trabalham. Estou vendo com meus próprios olhos. E se alguém pode fazer isso, também posso. A pulsão imitativa do ser humano engendra heróis e escravos. Se ninguém ainda morreu por causa das chicotadas, então eu também vou conseguir sobreviver. 'Tá vendo aquele sujeito ali, ele encara de frente a linha de fogo, meu Deus, esse sujeito, caramba, merece nosso respeito, tem coragem correndo nas veias.' É claro que eu também consigo. É assim que a guerra se perpetua e os navios-caixões continuam a vagar pelos mares, é sempre a mesma receita. Os homens seguem um padrão pra tudo; funciona tão bem que eles não precisam se preocupar em inventar uma outra receita. Não há nada melhor do que percorrer o caminho que já foi trilhado. Nos sentimos seguros. É por culpa da pulsão imitativa que a humanidade não tenha feito nenhum progresso real há seis mil anos e, apesar do rádio e da aviação, vive na mesma barbárie dos primórdios da civilização europeia. Assim fez o pai, e assim fará o filho. Fim. O que foi bom o suficiente pra mim, seu pai, provavelmente será bom o suficiente pra você, seu fedelho! [...]" (p. 166) - Trecho do Segundo Livro
Como é bom saber que ainda existem livros e autores deste nível a serem descobertos. Uma grata surpresa esta bem-cuidada edição, publicada pelo Selo Quimera da Editora 7Letras que pretende inovar por meio de formatações pouco comuns no padrão editorial gráfico contemporâneo, resgatando ao mesmo tempo clássicos da literatura pouco divulgados como é o caso deste romance do misterioso B. Traven. Vale destacar o excelente posfácio de Alcir Pécora que foi muito útil para entender o contexto da obra, assim como outras referências e interpretações que poderiam passar despercebidas, enriquecendo muito a experiência da leitura.
"Não precisa ficar com medo, Stanislaw, nenhum de nós jamais vai entrar lá. Não temos documentos. E você pode ter certeza de que lá em cima eles também pedem seus documentos, seu passaporte, certificado de batismo e de boa conduta. Se você não puder fornecê-los, vão fechar a porta na sua cara. Pergunta pros padrecos, eles vão te confirmar na hora. Tem que levar a certidão de casamento religioso, de batismo, de crisma, de comunhão e de confissão. Se lá em cima as coisas fossem assim tão fáceis quanto você pensa, ninguém ia ficar cobrando documentos da gente aqui embaixo. Mas parece que eles não confiam na onisciência deste todo-poderoso governante do céu; é melhor que seja tudo preto no branco e devidamente carimbado. Qualquer padreco vai te dizer que o porteiro lá de cima tem um grande molho de chaves. Pra quê? Pra trancar a porta, e impedir que um cara sem visto consiga se esgueirar pela fronteira." (p. 277) - Trecho do Terceiro Livro
Sobre o autor: Até hoje ainda não é possível falar com segurança sobre quem é o homem por trás do pseudônimo “B. Traven”. Sabe-se que foi um ator, autor e editor chamado “Ret Marut”, que esteve ligado à revolução anarquista de Munique, em 1919. Ret Marut chegou a ser condenado à morte pelas forças da repressão, mas escapou da execução e conseguiu chegar ao México, onde se estabeleceu e produziu um conjunto de obras de sucesso mundial, entre elas, além de O navio da Morte, O tesouro de Sierra Madre, adaptado para o cinema pelo cineasta John Houston, e vencedor de três Oscar; A Rosa Branca, A rebelião dos enforcados, Macário etc.