Paulo 22/10/2020
Quando falamos em histórias de fantasia, muitas vezes nos deparamos com o quanto já foi empregado todo tipo de narrativas. E o quanto o mito do herói já foi usado para contar um épico. Reclamamos de o quanto as histórias parecem as mesmas, porém ainda assim gostamos de um Sanderson, um Rothfuss ou um Martin. Por quê? Não importa o quanto um tipo de história já foi contada, quando bem contada, ela é um épico. Por mais que eu imagine como as coisas vão acabar ou tente fazer previsões loucas sobre o protagonista da história: o que importa é o trajeto. Em Guirlanda Rubra, primeiro romance longo de Erick Santos Cardoso, ele não inventa a roda nem nada do tipo. Mas, com toda a certeza do mundo, ele nos conta uma ótima história e eu tenho certeza que no final dela, você vai querer pegar o volume 2 o mais rápido possível.
Na narrativa, fazemos uma jornada ao lado de Garlando Espendi, o herdeiro da família Espendi, uma família de burgueses com ligações espalhadas por toda a Terra Pátria. Como todo garoto mimado, Garlando é um galanteador, curte uma boa festa regada a bebidas e muitas mulheres. Mas, ele tem um trauma de infância. Uma tragédia acabou matando seus pais e o deixou órfão, tendo sido criado por sua tia Reggiane. Além disso, seu coração pertence a uma menina que ele conheceu na infância, Celestiana Tessitore (ou Celes). Porém, Celes deixa a cidade onde moravam para seguir para Babélia. Todas as escolhas da vida de Garlando foram guiadas por suas lembranças de infância, a perda de seus pais e o amor que ele sente por Celes. Agora que se formou, sua tia Reggiane quer que Garlando assuma o negócio da família e tenha responsabilidade. Nosso protagonista questiona o fato de ter sido colocado em um caminho no qual ele não teve a capacidade de escolher. Mas, no fim das contas, ele será colocado de frente a uma trama que vai obrigá-lo a crescer antes do tempo.
Estamos diante do início de uma série de fantasia bem legal. O autor decidiu usar uma narrativa em terceira pessoa, partindo do ponto de vista do seu protagonista (Garlando). A escrita é bem tranquila de se compreender, sendo só um pouco pesada, mas vem do estilo de contar histórias dele. O encadeamento de palavras é bom, empregando uma construção que, diferentemente do personagem galante, é mais seco e direto. Ou seja, não temos um excesso de carga nas informações. Vamos pensar que se trata do primeiro volume de uma série e info dumping é praticamente o normal porque o autor precisa explicar o mundo, onde os personagens vivem, como é o cenário, como funciona a magia. E isso é feito de uma forma suave, pegando um pouquinho só na segunda parte, mas nada que incomode muito. Esse primeiro volume é dividido em três partes que representam estágios da jornada do herói: relutância/aceitação, conhecimento e clímax. A narrativa é escrita de uma forma fluida, fazendo com que o leitor deseje continuar a ler indefinidamente. Alguns autores usam capítulos curtos para emular essa fluidez, mas o Erick conseguiu fazer isso tão somente com a sua maneira carismática de escrever.
A narrativa conta com uma série de homenagens feitas a coisas que o Erick gosta. Dá para brincar de identificar várias delas como o amor de Garlando, Celes, ou o conde de Balamb, entre tantas outras coisas. Mas, diferentemente do que eu vi em outros livros, as homenagens pop ficam só nisso: homenagens. Elas não dirigem a forma como o Erick constrói a história. Por essa razão, para mim os nomes são apenas nomes mesmo e fico só na diversão de lembrar de onde eles saíram. Não me incomodou nem um pouco. Outra coisa legal é que a gente tem uma mistura curiosa de influências: um cenário que mescla magia e tecnologia, temos um tipo de torre de Babel, zigurates, um personagem que parece um guerreiro japonês (olha aí do lado). Eu poderia estar aqui reclamando dessa salada de referências, mas achei-as bem harmônicas com aquilo que o autor quis construir. Nada está ali por estar; as coisas fazem sentido e possuem um propósito narrativo maior. Até fico surpreso pelo Erick ter colocado tanta coisa porque ele se arriscou com isso. Poderia ter dado muito errado e a gente partir para a falta de coerência ao invés de uma harmonia potencial. Legal!!
Só acho que poderia ter tido mais de um ponto de vista. Ao centrar a história demais no Garlando, os outros personagens acabam ofuscados demais. E isso prejudica no momento de construção de um elenco de apoio. Diria até que poderíamos dizer que, apesar da voz narrativa ser uma terceira pessoa, o livro lembra muito mais algo em primeira pessoa (já vi alguns estudiosos chamarem de terceira pessoa próxima). Até porque todas as impressões e informações que temos da história partem de coisas perceptíveis para o Garlando. Quando você tira o foco de um personagem e espalha, isso ajuda na revelação de informações que não estão sempre à disposição do personagem. Claro que o autor pode ter pensado em desvendar o mundo aos poucos junto do protagonista, mas é possível dosar o quanto é fornecido ao leitor. E ao mesmo tempo tira o peso de o protagonista carregar a narrativa nos ombros. Eu gostei do protagonista, apesar de algumas posturas dele (e que fazem sentido de acordo com sua criação), mas pode ter leitores que não vão gostar. E esse é um dos pontos frágeis da narrativa em primeira pessoa. Como eu mencionei, ou o autor poderia ter criado mais um ou dois pontos de vista orelha ou partido mesmo para a primeira pessoa. No segundo caso, daria para trabalhar os acontecimentos vividos pelo protagonista de uma maneira mais visceral e emocional. Mas, são escolhas.
Outro ponto que eu teria feito diferente é onde fazer uma certa revelação sobre o nome de uma certa personagem ao qual o protagonista se lembra mais para a frente. Na revelação, o autor pega uma cena de flashback para mostrar como isso se deu. Eu teria colocado essa cena antes, bem antes no texto (até antes de ele ter uma certa outra informação). Em escrita criativa, a gente usa a expressar usar um red herring. Usar informações a mais para confundir a cabeça do leitor quanto ao direcionamento. E estes flashbacks iniciais são ótimos para desviar o foco do leitor e fazê-lo construir teorias da conspiração que não existem. No meio deles, daria para inserir este flashback específico. Quando viesse a informação mais à frente o leitor ficaria com aquela sensação de "a-há". Até mesmo a cena em que ele descobre a ligação do nome poderia ter sido bem mais adiante, próximo do final.
Eu adorei o protagonista. O autor poderia ter partido para aquela ideia de criar um personagem perfeito e ideal com o qual viver suas provações. Tal não é o caso. Garlando é qualquer coisa menos um personagem "heroico". Não pela falta de ações até porque quando ele se vê em uma situação em que precisa ajudar alguém e estiver ao alcance dele, ele vai fazê-lo. Mas, ele é um personagem nitidamente guiado pelo amor. O seu amor por Celes domina as suas escolhas. Isso tanto para o bem quanto para o mal. Se ele se vir em uma situação em que ele ou segue atrás de Celes ou ajuda alguém, a escolha pode pender para o primeiro lado. Isso demonstra uma imaturidade da parte do personagem, algo que é deixado claro desde o início. Ele até vai mudar um pouco o seu jeito, mas traços desta personalidade vão permanecer, mesmo em momentos em que achamos que isso mudou. Por essa razão, um acontecimento lá para o final do livro eu imaginava como iria terminar. Porque o personagem cresceu um pouco, mas ainda não havia se tornado um adulto. Muitas de suas preocupações continuavam a ser as mesmas de sua infância. Elas só haviam tomado uma profundidade maior.
Conhecemos Celes pela visão que Garlando tem da personagem. Portanto, podemos dizer que não apenas a narrativa é em terceira pessoa próxima, como o pseudo-narrador não é confiável. Isso porque são as lembranças dele sobre a personagem; pode não ser a forma como Celes enxerga os fatos. E algo me diz que o segundo volume vai ser focado na Celes e não no Garlando (olha, não sei de nada não, tá, gente... estou só deduzindo). E quem já não teve aquela paixão em que idealizávamos a mulher amada? Colocávamos essa pessoa em um pedestal a ponto de criar toda uma narrativa sobre ela. É assim que eu enxergo a relação entre Garlando e Celes. Quando aparece uma outra personagem na narrativa que poderia ser um par romântico para ele, Garlando prefere se agarrar a uma obsessão por alguém que ele não vê há muito tempo. Falta ainda ao personagem ultrapassar essa etapa de sua vida para que as coisas comecem a se tornar mais claras. Qual é o seu papel no mundo? Talvez essa seja uma grande pergunta colocada ao longo deste primeiro volume e deixada no ar porque o personagem ainda não soube respondê-la, mesmo após passar por acontecimentos marcantes.
Como a narrativa se centrou muito em Garlando, senti falta de conhecer mais sobre os outros personagens. Por exemplo, o tio Ralfo que acaba se tornando uma presença marcante mais para a frente. Teria sido bom dedicar mais tempo a solidificar a relação entre os dois e isso um ou dois flashbacks a mais com cenas cotidianas ou de formação teriam bastado. Não ficou claro para mim a importância da Universidade e de se formar para Garlando. Como a gente viu a história já no momento em que ele se formava, seria preciso compreender de uma forma mais cristalina o quanto isso interferiria em como ele iria tocar os negócios dos Espendi. Outra oportunidade muito legal que acabou ficando um pouco para trás foi com a Rosa Vermelha. Uma personagem com potencial para momentos marcantes como manipulação política, controle de um personagem... achei que ela acabou sendo dispensada rápido demais na história. A personagem que mais me marcou nesse primeiro volume foi Reggiane Espendi. Aí sim, houve um belo trabalho da parte de Erick ao nos apresentar uma mulher segura de si, dominante em seus negócios. Uma comerciante no sentido mais estrito da palavra. E que, em um momento onde ela não tem mais o controle das ações, ela se sente com medo, apesar de não perder sua postura. Adorei e quero vê-la mais nos próximos volumes (acho que a veremos sim).
Importante mencionar também que o autor incluiu algumas cenas de ação sensacionais. É difícil escrever cenas de ação. Isso porque o autor precisa ter uma noção de um roteiro a ser seguido e onde posicionar os personagens. É como mexer em um grande tabuleiro onde cada ação afeta não apenas o personagem que está sendo descrito, mas todos os outros que estão juntos dele. Isso porque tudo acontece em sequência. É bem comum um autor se perder nas descrições deste tipo de cena ou preferir descrever cenas mais contidas, com poucas variáveis próximas umas às outras. Aqui não só as ações parecem verossímeis, como as magias empregadas respeitam uma física bem legal. Elas têm todo um conjunto de regras ao qual o autor segue bem. Claro que, na proposta de ter um personagem que encontra um artefato de poder, é preciso encontrar brechas nas próprias regras que ele criou. É óbvio que em algum momento vai aparecer alguém que vai distorcer uma ou duas coisas na física criada.
Dá para contar muita coisa ainda sobre o conflito entre os imortais, sobre a magia do mundo que é proibida pela Inquisição, sobre as crisálidas. Mas, quero deixar um pouco para os leitores descobrirem no livro. Como puderam ver, Guirlanda Rubra tem muito conteúdo para te mostrar. Seja com um protagonista marcante que vamos desejar acompanhar seu crescimento, um contraponto a ele que deve ser desenvolvido em próximos volumes, uma guerra que parece que vai avassalar o continente e provocar terríveis mudanças, uma torre ancestral que esconde muitos segredos. Eu adorei a leitura e preciso parabenizar o Erick por um livro de estreia tão legal.
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