Flávia Menezes 23/04/2024
NEM DORIAN GRAY É TÃO SEDUTOR QUANTO UM TERRA-CAMBARÁ.
?O Retrato ? vol. 1? é a segunda parte da trilogia de ?O Tempo e o Vento? escrita com uma prosa fascinante que se refina a cada volume. Nesta nova parte da obra, Érico Veríssimo nos transporta de volta ao micromundo da cidade de Santa Fé, onde vai desenhando um panorama sobre a mentalidade da elite gaúcha do começo do século XX.
A cada página, vamos sentindo uma mudança na prosa do autor, que a partir deste vai se modernizando no uso do ponto de vista narrativo na terceira pessoa limitada dentro de introduções oniscientes, modificando sua narrativa do épico para o psicológico.
Mas não é só o tom da narrativa que sofre uma mudança, mas todo o seu enredo. Nesta continuação acompanhamos a vida do já conhecido Rodrigo Terra Cambará, o bisneto do heróico capitão Rodrigo, que retorna a Santa Fé em 20 de novembro de 1909, formado pela Faculdade de Medicina de Porto Alegre.
Para ele, apesar de todo o amor pela cidade que abriga a história dos seus antepassados tanto quanto do pai que ele tanto ama e admira, Santa Fé é uma cidade muito atrasada no tempo, e que vive a aflição da espera pela passagem do cometa Halley.
Aos poucos vamos vendo o quanto o Dr. Rodrigo Cambará vai revelando sua semelhança com o bisavô do gosto pela novidade, e aquele já conhecido espírito aventureiro de quem não quer fincar suas raízes, mas de ser livre para experienciar coisas novas o tempo todo, incluindo aquela vaidade imatura de quem acredita que os prazeres da vida está em não ter uma mulher apenas, mas o de conquistar e ser por todas amado e adorado.
Aliás, ser adorado é algo que descreve bem este livro, e assim como ocorre em ?O Retrato de Dorian Gray?, de Oscar Wilde, adoração é exatamente o que busca o Dr. Rodrigo Cambará. De fato, fazer esse paralelo com a obra do escritor inglês não poderia ser mais perfeito, já que ambos os protagonistas apresentam uma personalidade complexa que mescla a hipocrisia com o heroico, a sensualidade com a tradição, resultando nesta luta interna de uma identidade em conflito que ora exibe momentos de autoconfiança absoluta, alternado com momentos de uma rejeição profunda de si mesmo.
Toda essa mudança que sentimos em ?O Retrato? renova nossa motivação e fascínio na leitura, e esse novo tom que vai sendo dado, vai nos fazendo sentir novas emoções em relação a essa família que já acreditávamos conhecer tão bem.
Uma sensação que tive durante a leitura é que a modernidade nos traz um novo Rodrigo Cambará, que não só pode exibir um diploma universitário, como se mostra amante de tudo o que é mais refinado e requintado.
Aqui, o ir para a guerra não é mais na base da espada ou da bala. Nem na luta do corpo a corpo. Agora a guerra é através das palavras, e é aí que me pergunto: será que toda essa civilidade torna tudo mais fácil? Após terminar essa leitura, penso eu que não.
Um golpe de espada, ou o ser atingido por uma bala pode trazer um grande sofrimento físico e fazer alguém sangrar em cortes que perpassam a epiderme, chegando até a carne. E a dor que provocam é algo descomunal. Mas aqui, vemos que as palavras podem até não fazer jorrar o sangue que correm nas nossas veias, ou provocar dores alucinantes capaz de fazer qualquer um (mesmo um Terra-Cambará) perder os sentidos, mas quando atingem a honra, quando denigrem a moral e a reputação de uma família, é o ego que sangra. E aí, a dor provocada é de uma ferida que jamais cicatriza. Mesmo que morra aquela que as proferiu.
Uma das figuras mais marcantes deste volume é a de Maria Valéria Terra, a Dinda, que irá assumir de forma sublime o lugar da matriarca da família com o mesmo pulso firme daquela que a antecedeu (Bibiana). O que mais me encanta na Maria Valéria é que por trás da sua postura firme da mulher durona, vemos uma mulher amorosa que assume para si os filhos da irmã como se fossem seus, e por eles (especialmente pelo Dr. Rodrigo Cambará) é adorada. Aliás, os momentos vividos por estes dois, sem sombra de dúvida, são os mais divertidos!
?O Retrato ? volume 1? é uma continuação fantástica daquela que é (para mim) uma das melhores e mais perfeitas trilogias de romances da literatura brasileira. Não há como não dizer que estou a cada livro ainda mais apaixonada pela prosa do Érico, e ainda mais fascinada por cada novo Terra-Cambará que vou conhecendo ao longo dos volumes.