Fabio 28/02/2024
"A belissima jornada da amizade"
"... como muitos pais amorosos, eu tenho, no fundo, no fundo, um filho favorito. E seu nome é David Copperfield".
Charles John Huffham Dickens ou simplesmente "Boz", considerado um dos maiores e mais populares escritores de todos os tempos, nasceu em Potsmouth, Inglaterra no fim do inverno de 1812, e suas obras foram compostas entre 1836 e 1870 e durante esse período publicou mais de 40 livros, a maioria em forma de fascículos mensais publicados em jornais e revistas londrinos.
Com "David Copperfield" não foi diferente. Publicado originalmente em folhetins semanais, entre 1849 e 1850, um dos maiores romances de da história da literatura mundial, só ganhou o formato que conhecemos nos dias de hoje, seis meses após de ter sido publicado o ultimo fascículo na revista mensal de Bradbury & Evans.
Narrado em primeira pessoa, em forma de relatos e memórias, em "David Copperfield", somos convidados a uma jornada épica e extraordinária pela vida de David, desde a infância até a maturidade, e através do olhar do próprio protagonista, somos apresentados a mais de trinta personagens (todos memoráveis), que surgirão durante toda a história, e acompanharemos então, a intima relação de boa parte desse elenco na vida e história do nosso herói.
No início do percurso somos transportados para a segunda década do século XIX, na pequena cidade de Blundstone, costa leste do pais, e acompanhamos a primeira parte da infância do menino, em meio ao seio familiar. Após várias ocorrências e intempéries, David, vai para Londres, onde sofre provações de todos os tipos e durante esse período acompanhamos a o que podemos chamar de segunda etapa da infância. Porém é nessa mesma época, que sua vida converte abruptamente, e é na cidade de Dover que tudo se transforma, e David, reencontra a felicidade perdida em meio aos labirintos londrinos, e inicia a jornada que desagua nos anos da prospera juventude. Na fase seguinte, já renomeado como David Trotwood Copperfield (também conhecido pelos apelidos: "Daisy", "Doady", "Trot" e "Davy") acompanhamos a adolescência, a fase adulta e a maturidade do protagonista, onde descobre novas amizades e reencontra velhos amigos, manifesta a paixão, e outros sentimentos que, até então desconhecia, mas é na amizade que o herói se ampara, e constrói toda a base de sua vida. Em meio a todas as desgraças e infortúnios, sofrimentos e alentos, amor e ódio, que David, prova pagina após pagina que é um ser honrado, diligente, otimista e sobretudo, perseverante, que toca, emociona e conquista desde as primeiras linhas.
De caráter autobiográfico, Dickens inseriu muito de sua própria história em "David Copperfield", destarte, mesclou ficção e realidade, resultando num texto extremamente realista, repleto de alegorias e simbolismos pessoais. Dickens também utilizou dos cenários de sua infância para tecer críticas contra as convenções sociais de uma era vitoriana, em que a sociedade se apoiava totalmente na riqueza, especialmente, no que se refere aos maus-tratos dos menos abastados, em particular, as crianças de rua e os homens sem instrução, que não possuíam condições sequer da subsistência, quanto mais de almejar erudição. Com o intuito claro de imprimir realismo nas ações de seus personagens, Boz, transcreveu de forma imperceptível ao texto suas experiências, sobretudo os revezes de sua vida e as dificuldades pecuniárias e, emprestou de seres reais, principalmente do círculo que conivência, as características necessárias para compor seu prolifico elenco, personificando inclusive familiares dentro do cerne de seus personagens, e para ilustrar, Dickens, emprestou de seu pai, todas as caraterísticas, tanto físicas quanto psicológicas para criar, Wilkins Micawber, amigo íntimo do menino David Copperfield. Não importa notabilidade ou a notoriedade dos personagens no interior da obra, em algum momento, seja o protagonista, o antagonista ou mesmo os coadjuvantes, poderá vislumbrar as nuances e reconhecer o criador pela criação, através da angústia e beleza das chamas dickensianas.
Outro ingrediente fundamental de "David Copperfield", são os encontros e desencontros dos seus mais variados personagens com o protagonista, e esse fato, demonstra o quão incrível é a capacidade de Boz, em movimentar uma trama dessa magnitude, com dezenas de personagens, sem deixar, que um sobressaia demasiadamente ao outro, ou que, determinado personagem caia no esquecimento, ou sobreluza ao herói. Entretanto, a genialidade de Dickens é evidenciada em mais alto grau, quando passamos a nos identificar com vários dos personagens e não só ao protagonista, e que, nos imaginamos ali, participando da cena, sofrendo, rindo e chorando, odiando, ou desejando vingança aos injustiçados. E nesse quesito, a genialidade é fria e cruel, quando passamos a odiar os antagonistas, desejando-lhes as mais variadas formas de sofrimento.
Dickens nos convida a julgar os personagens com base em suas ações e características individuais, e quer provar a todo instante na sua obra-máxima, que riqueza e status social não indicam o caráter e a moralidade, e que títulos, dinheiro e bens materiais, vem e vão, e não podem ser a motivação principal de uma vida.
Trata-se de um romance de formação, onde Dickens esmiúça os aspectos morais, psicológicos e sociais do ser e utiliza da trajetória do protagonista para evidenciar a máxime, evolução e maturação, do ser humano, nos altos e baixos, provado pelas vicissitudes da vida, desde a tenra infância ao último e derradeiro suspiro. Nos primeiros capítulos, Dickens investiga com primor a infância e as inquietudes da inocência, e ao decorrer dos estágios da narrativa, as inquietações, dão lugar a outras próprias de cada fase da vida, entretanto, mantem de forma irredutível a inocência de seus heróis até o fim da vida, no intuito de assemelhar seus personagens aos heróis sem maculas das eras clássicas
O dileto filho do autor é embebecido em fontes realistas, no qual Dickens era proeminente adepto, pois valorizava no texto, as situações cotidianas, sem floreios, sem idealizações, de forma bem objetiva, chegando a imprimir em certas cenas, extrema banalidade e trivialidade, entretanto sem nunca perder autoridade ou estética. Basta ler algumas páginas de "David Copperfield", para sentir o peso do factual, peculiar aos textos de Dickens.
As habilidades de escrita de Dickens são notáveis, e indubitavelmente não existem, digressões ou imperfeições, o texto é fluido, e mantem uma constante suavidade e elegância do início ao fim. Os capítulos são extremamente curtos repletos de ritos de passagem, mudanças repentinas do decurso e viradas narrativas, característicos da literatura vitoriana, e essa técnica é proposital, somente com a finalidade de seduzir o leitor no final de cada divisão, criando uma atmosfera de expectativa e urgência, que, captura o legente a desejar o próximo capitulo. Entretanto, nessa fase, podem aparecer trechos com certas prolixidades, mas, que não causam cansaços significativos no ritmo da leitura.
"David Copperfield", nos remete olhar para a essência da palavra perseverança, que, deveria ser o subtítulo desse livro, uma vez, que é a chave para compreender obra e para decifrar os códigos socio-filosóficos que a compõem, e destarte, também alcançarmos o entendimento daquilo que o gênio propôs, nas entrelinhas dessa gigantesca obra, uma vez que somos homens falhos e incompletos, e que, só nos assemelharemos com o Criador, se possuirmos a Fé.
Em suma, "David Copperfield", é uma Obra-Prima da literatura mundial, reverenciada, pelos maiores pensadores e escritores contemporâneos a Dickens e aos que vieram depois deles, portando não há como falar de literatura ocidental, sem citar, Dickens, e não há como mencionar ele, sem pensar em "David Copperfield".
"David Copperfield, foi meu companheiro e alento durante os dias frios e amargos no cárcere da Sibéria" Fiódor Dostoieviski
“Quando lemos Dickens, reformulamos nossa geografia psicológica “Com tamanha força nas mãos, Dickens fez seus livros se inflamarem, não apertando a trama ou afiando a fala, mas atirando mais um punhado de gente no fogo” Virginia Woolf.
Se tratando de uma obra de folego (mais de 1200 páginas), inevitavelmente, pode-se perder o ritmo da leitura, mas, peço que não desanimem e sejam perseverantes como David, pois é na dificuldade que são provados os homens de fé.
Antes de encerrar, gostaria de agradecer as minhas queridas Mari, Vanessa e Aurea e ao meu brother, Fabão!
Obrigado pela companhia, pela paciência e por não largarem as mãos mesmo na dificuldade!
Gratidão meu amigos!