Bela 27/05/2021
David Copperfield - Charles Dickens
Construído enquanto um romance de formação, David Copperfield apresenta a trajetória de David, indo de seu nascimento até sua meia-idade e acompanhando seu crescimento enquanto uma criança órfã de pai que teve apenas a mãe e a babá, Peggotty, enquanto companhia por bons anos de sua infância. Acompanhado da presença das duas mulheres, David vivia feliz até que a chegada de seu padrasto, Sr. Murdstone, e de sua irmã, Sra. Murdstone, alteram a dinâmica de sua casa e fazem com que o garoto seja enviado a um internato, bem como tiram dele o carinho e a espontaneidade que sua mãe sempre demonstrara. Rígidos e críticos, os Murdstone atormentam a mente da jovem mãe de David e a pressão, a distância e a infelicidade em que a vida dos dois se torna após a chegada do padrasto culmina na morte da mulher, deixando David órfão de família e refém da vontade do par de irmãos que assume controle de sua casa.
“Se serei o herói de minha própria vida, ou se essa posição será ocupada por alguma outra pessoa, é o que estas páginas devem mostrar. Para começar minha vida com o começo de minha vida, registro que nasci (conforme me informaram e acreditei) numa sexta-feira, à meia-noite. Notaram que o relógio começou a bater as horas e comecei a chorar simultaneamente.”
Indesejado, David é enviado para trabalhar em Londres, onde passa parte de seu tempo livre convivendo com as famílias mais pobres da cidade e tem uma rotina de trabalho exaustiva e cruel para qualquer criança. Decidido a não mais viver naquela realidade, o menino arrisca tudo que tem para encontrar a única parente viva de seu falecido pai, sua tia, Betsey Trotwood. Seu encontro com ela mudará seu destino e o fará crescer em meio a estudos, descobertas amorosas e a convivência sempre presente não apenas daqueles que ele encontrará em sua jornada após encontrar com sua tia, mas também das figuras principais de seu passado, seja sua babá, a família dela que o abrigava nas férias, a família Micawber com quem conviveu em Londres e a amizade feita na época do internato.
Em meio a um núcleo de personagens com enredos próprios e uma narrativa descritiva, lenta e envolvente, David Copperfield apresenta a vida de seu protagonista e de todos aqueles que estavam ao seu redor provocando reflexões sobre o amor, família, rancor e, principalmente, sobre como que pode-se sobreviver em meio aos acontecimentos imprevistos que desviam nossas vidas para caminhos que jamais imaginamos.
Minha Opinião
Charles Dickens foi um escritor que conheci graças a minha personagem favorita de uma saga de fantasia urbana escrita por Cassandra Clare. Tessa Gray, de As Peças Infernais, falava tanto a respeito de Dickens que fui impelida a conhece-lo e encontrei a escrita do autor primeiramente em seus contos. Não apenas o famoso e atemporal Um Conto de Natal, mas também suas tramas menores sobre fantasmas, crianças e amor – ou a falta dele – dentro do ambiente familiar. Famoso mesmo enquanto vivo, Dickens moveu uma legião de leitores por suas narrativas e uma de suas maiores contribuições literárias foram os seus romances de formação, subgênero literário na qual acompanhamos um personagem por todos os anos de sua vida, seguindo passo a passo de sua trajetória cotidiana e seus anos de crescimento.
Dentre seus romances de formação, David Copperfield despontava como favorito pessoal do autor, declaração apresentada por ele próprio. E não é difícil entender o porquê: assim como todos os livros de Dickens, David Copperfield sabe com maestria apresentar a trajetória humana comum, de crescimento, queda, medo e felicidade, cada momento simples ou grande de nossas histórias cotidianas. E o livro ainda faz isso com um núcleo de personagens marcantes e misturando seus enredos com o realismo e o idealismo, fornecendo assim uma história que trata das crueldades que podem ocorrer na vida, mas que também prova que há sentimentos bons pelos quais ainda se manter são.
Meio apavorante pelo tamanho inicial, a história de David Copperfield realmente não vai ser daquelas que lemos com rapidez. Cada momento do livro é uma trajetória a qual seguimos passo a passo para imergir na vida daquelas pessoas. É uma leitura lenta, mas proveitosa em cada segundo. As descrições de Dickens são riquíssimas e tão bem dispostas que nunca se tornam cansativas e só engrandecem os pensamentos, diálogos e apresentações de cenas e ambientes. Por ser um narrador que também é personagem, David conta sua história já na meia idade, ocasionalmente fazendo pequenas interferências para deixar claro que boa parte das suas descrições são memórias e são um exercício até mesmo para ele: há cenas que ele deixa explícito que não se lembra completamente, ou que só tem a recordação fixa de um detalhe ou que só agora ele percebe o que realmente aqueles sinais queriam dizer.
Como um bom livro que segue a vida inteira de uma pessoa, há em David todos os sinais de se ver alguém crescer e gostar e desgostar de suas ações conforme o seu tempo interno passa. Quando criança, David é um personagem muito bondoso e ingênuo e é nítido a diferença de percepção que esse personagem jovem tem quando compara-se com seu desenvolvimento já jovem, agora menos ingênuo, mas ainda bondoso e emocional, o que vez ou outra gera uma leve irritação por sua impulsividade. Mas é essa a melhor trajetória de um romance de formação: conhecer cada pedaço de uma pessoa enquanto o tempo passa e vê-la acertar, errar e mudar a cada fase de sua vida.
“Não há dúvidas de que eu era um ocioso sentimental, mas mesmo assim havia nisso uma pureza de coração que me impede de ter uma lembrança negativa a respeito, mesmo me fazendo rir.”
Para além de David, o núcleo de personagens que o cerca são impecáveis. Não fugindo do idealismo e de alguns arquétipos importantes: Tia Betsy é a personagem excêntrica, mas de boas intenções; Pettygoy é leal a David desde seu nascimento e o aconselha em todos os momentos; Agnes é a perfeita personagem sábia, reservada e injustiçada que sempre esteve por David quando ele precisou dela; Micawber é o típico personagem vadio, mas de bom coração e que apesar de meter os pés pelas mãos, termina sempre fazendo o que é justo; Urip Heep é o antagonista desde seus primeiros momentos na trama, aumentando o grau de suas interferências na vida paralela a de David que sempre tornam sua presença um incômodo até mesmo ao leitor; Emily é a paixão e amizade de infância que cresce com um destino difícil e por quem David e os demais fariam de tudo para proteger. Esses e tantos outros personagens fortalecem a trama de David, alguns dos principais enredos da trama estão com eles e David, assim como “na vida real” age apenas em paralelo a eles e mesmo assim nunca deixa de ser interessante e empolgante.
O enredo também apresenta distintas questões sociais típicas da narrativa de Charles Dickens: o assunto “crianças órfãs” é bem comum de ser associado ao autor, mas em David há um toque a mais com a temática do abuso psicológico em que ele e sua mãe viveram enquanto o padrasto morou em sua casa. Afastado da mãe e vendo a manipulação intensa em que ela vivia sob as mãos dos irmãos Murdstone, David, ainda uma criança que não entendia completamente a maldade e as más intenções ao seu redor, concentra-se principalmente em querer ver a mãe feliz de novo e é sob seus olhos infantis que vemos aos poucos o definhamento mental a que ela é submetida. Com a morte da mãe de David o assunto torna-se ainda mais complexo: indesejado, David é despachado para Londres e Dickens começa então a abordar a situação social da cidade, em que famílias pobres viviam sob condições desumanas e crianças – ainda não tratadas sob o conceito contemporâneo de infância – eram tratadas como adultos em miniatura e trabalhavam em condições degradantes. É nesse ponto que vemos como que Dickens mistura realismo e idealismo: as partes séries, cruéis e tristes da situação em que David e os Micawber se encontram provoca momentos dolorosos de acompanhar, mas mesclam-se com o idealismo dos personagens e misturam de forma forte e concisa os sentimentos de impotência e injustiça com a esperança e união entre os personagens.
Presa meu abraço, eu levava comigo a fonte de todas as aspirações que já tivera, o centro de mim mesmo, o círculo de minha vida, minha esposa, só minha, meu amor sólido como uma rocha.”
Além dessa abordagem, Dickens também questiona elementos da vida social da classe média de seu tempo, principalmente ao mostrar as incoerências e confusões do trabalho dentro da promotoria londrina, em que os funcionários que mais são justos e preocupam-se de fato com a situação profissional, seriam aqueles que mais são dispensados, enquanto outros ganham mais créditos sem o mesmo esforço. Nesse campo profissional, o trabalho que David aos poucos começa a perceber que é o que ele sempre quis é um elemento que conecta sua trajetória diretamente com a de seu autor: David Copperfield também se torna um escritor, assim como seu criador.
É de modo lento, mas envolvente, que David Copperfield torna-se uma daquelas experiências únicas e inesquecíveis. Mostrando apenas a vida real sob os olhos de um personagem que vemos nascer e acompanhamos até a velhice, o livro mostra que mesmo na vida “normal”, há nossos próprios enredos narrativos que devemos protagonizar e há aqueles enredos que pertencem aos outros e que só atuamos como observadores. Em uma história cheia de sentimentos e que mostra tanto de diferentes realidades em cada personagem por quem David passa, chegamos ao final dessa leitura com a certeza de que não há livro como esse e nem personagens como esses por aí. De longe uma das melhores leituras do ano e já um dos favoritos da vida, David Copperfield é a indicação perfeita para aqueles que gostam de um livro clássico ou de tramas que são lentas, mas que entregam uma história que não vai sair de você mesmo após a finalização da leitura.
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