Lucas 15/09/2016
Manancial de emoções nostálgicas
"Se serei o herói de minha própria vida, ou se essa posição será ocupada por alguma outra pessoa, é o que estas páginas devem mostrar".
A primeira frase do livro David Copperfield, acima representada, é plenamente capaz de trazer uma mínima noção do aspecto singular da narrativa em primeira pessoa da maior obra-prima (segundo ele mesmo definiu) do inglês Charles Dickens. De fato, é um texto leve, íntimo e repleto de nostalgias.
Lançado em 1850, David Copperfield é "semi-autobiográfico", misturando ficção com muitos pontos reais da vida de Dickens. Ao fazer um relato de si mesmo desde o seu nascimento, David enche o leitor de emoção, alegria, tristeza e revolta, sentimentos estes mais presentes na sua infância difícil. Descrevendo tudo o que lhe cercava, as pessoas, os costumes, as diversas classes sociais, e, por meio indireto, fazendo um belo retrato da sociedade inglesa do início do século XIX, a obra gera no leitor, além dos sentimentos acima mencionados, um estado único de apego a história contada. Por mais que o tamanho do livro possa assustar à primeira vista (a belíssima edição da Cosac Naify tem mais de 1.200 páginas de história em si), é impossível o leitor abandonar a obra antes de ela ser devorada.
Dois fatores contribuem para o "vício" que o livro gera. O primeiro deles se refere às pouquíssimas digressões que ocorrem na história, relacionadas ao fato de todo o livro ser intimamente contado pelo seu protagonista, cuja ênfase é, objetivamente, direcionada à sua vida e trajetória. Outros clássicos da época, de vulto semelhante, traziam uma ampla abordagem filosófica e até mesmo psicológica da sociedade em questão. Estes clássicos assim o são por este e incontáveis outros aspectos, mas isso não os colocam num panteão inferior a David Copperfield; é apenas um argumento que diferencia a obra de Dickens das demais. Inegavelmente, no entanto, essa pequena quantidade de reflexões digressivas pode ser vista como um ponto positivo animador ao futuro leitor, especialmente se ele for menos experiente nos ditos clássicos da literatura universal.
Outro ponto que algema o coração do leitor a David Copperfield reside na brilhante e singular narrativa lúdica de Dickens. Por mais que hajam, de fato, pequenos trechos onde aspectos cotidianos corriqueiros e, aparentemente, inúteis, são relatados, a escrita é incrivelmente nostálgica. Ela, a narrativa, simples e sempre convidativa, transporta a alma do leitor de uma forma poucas vezes vista em um livro. É impossível, por exemplo, que quem lê não se encante com diversas pessoas que faziam parte da existência de David na infância. Igualmente improvável que o leitor não se veja como Copperfield na sua inocência infantil, nos seus dilemas de adolescente e com suas preocupações de adulto. Com isso, desenvolve-se naturalmente um estado de associação imediato, pois o leitor é capaz de chorar, sofrer, se alegrar e se emocionar com David da mesma forma que, talvez, tenha feito consigo mesmo um dia. Este sentimento de natural empatia é fortalecido pela variada e verossímil gama de personagens criada por Dickens. Qual indivíduo nunca temeu um professor "malvado"? Qual pessoa nunca se apaixonou cegamente por alguém, mesmo que este alguém tenha algumas peculiaridades, oprimidas pela paixão? E para quem já leu-o, quem nunca teve ou desejou ter uma amiga como a srª Peggotty ou Agnes? Estas e outras dezenas de "realidades", comuns a praticamente todos, permeiam toda a história.
O futuro leitor, ao pesquisar a respeito da obra, não encontrará muitas informações relevantes nas sinopses e resumos oficiais. A presente resenha segue esta prática, pois não há muito a ser dito sobre a vida de David Copperfield que não esteja relacionado ao mencionado apego que sua história cria. Importante saber que, sob a pena de Dickens, muitos indivíduos realmente não são o que parecem ser. Por mais nostálgico e lúdico que seja, o livro tem um feitiço (fascinante) baseado em mistério. Em suma, trata-se da trajetória de um indivíduo comum, sem fantasias e digressões profundas. Um espelho natural do curso da existência, recheado de idas, vindas, encontros, reencontros inesperados, partidas sofridas, doces recordações, anseios... Indivíduos amorosos, misteriosos, imprevisíveis, humildes, assustadores... Partindo-se para um ângulo mais pessoal, o que é a nossa vida senão isso? Uma infinidade de idas, vindas, retornos e lembranças, sejam de pessoas, lugares ou acontecimentos.
Por fim, a história de David Copperfield é um lembrete ao fato de como a nossa existência, independente de crença, é incrivelmente aleatória. Do quanto o mundo parece minúsculo às vezes. De como estamos naturalmente suscetíveis à tragédias e coisas boas. Como Tom Hanks e seu grande Forrest Gump nos ensinam, ao fim de tudo somos apenas uma pena vagando ao sabor do vento. E como a obra de Dickens demonstra, cabe a nós fazermos o melhor que pudermos até o vento parar de soprar.