spoiler visualizarSarah 24/05/2019
O pensamento de Gil Vicente como sátira
Gil Vicente viveu em Portugal, no século XV e XVI. Protegido pela “rainha velha”, dona Eleonor, Gil Vicente apresentou seus teatros para a corte, vivenciando três reinados: de D. João II, de D. Manuel e de D. João III.
O dramaturgo encontrou um terreno escasso do teatro português; as poucas produções da Idade Média eram “inorgânicas” (SPINA, 2002). Por isso, ele é considerado por muitos o fundador do teatro português. A parte disso, Gil Vicente teve uma produção fértil, que incluíram autos, teatro romanesco, fantasias alegóricas e farsas.
Compreender o período histórico e as ideias de Gil Vicente ajuda a compreender suas obras. O escritor viveu no período das navegações ultramarinas e refletia os ares de Portugal da época: a oposição entre os modos camponeses e medievais e a inovação das descobertas do Novo Mundo. Gil Vicente viveu essa contradição e demonstrava em suas obras um pensamento crítico, mas ainda arraigado às maneiras medievais. Seu teatro é diferente do teatro clássico e do barroco, pois o foco dele está palavra e não na representação (cenotécnica). Além disso, o caráter temporal não segue a linha aristotélica: em Gil Vicente, o tempo é psicológico e em uma mesma peça podem transcorrer meses e até anos.
A Farsa de Inês Pereira foi representada pela primeira vez no ano de 1523. Apresenta poucos personagens, dos quais: Inês Pereira; Lianor Vaz; Pero Marques e Escudeiro. Em minha interpretação, o texto é uma sátira da “hipocrisia” dos diversos segmentos sociais, que caracterizam cada personagem.
A história começa com Inês Pereira, personagem principal, costurando na casa da mãe e reclamando que vive enclausurada. Sua mãe, que, assim como Inês, parece uma pequena burguesa, sugere que já está na hora de Inês arranjar um marido. Dessa forma, ela chama Lianor Vaz, uma casamenteira que chega falando do abuso que sofreu por um clerical no caminho, para encontrar um marido para Inês.
O pretendente que Lianor traz é Pero Marques, um homem de posses. Este, porém, é esculachado por Inês, porque não tem modos cavalheirescos nem uma linguagem refinada. Inês chama, então, dois judeus para lhe arranjarem outro pretendente. Estes lhe arranjam um escudeiro – representante dos decadentes “fidalgos”, aqueles que iam lutar nas Cruzadas medievais – que, a princípio, se mostra um perfeito cavalheiro, que sabe cantar e falar bem.
Apesar da desaprovação da mãe, Inês casa com o escudeiro. Eles passam a morar na casa que a mãe de Inês lhes dá, já que o escudeiro não tem um tostão. Após o casamento, porém, o escudeiro se mostra um tirano, trancando Inês em casa e a obrigando a passar o dia todo com tarefas domésticas.
Até que o escudeiro parte para lutar em uma Cruzada, deixando Inês aos cuidados de seu ajudante. A moça torce, então, para que o marido morra e sua sorte mude. E é o que acontece: certo dia ela recebe uma carta do irmão, contando que seu marido morrera ao tentar fugir à luta.
Feliz, Inês procura um novo marido e acaba aceitando Pero Marques, seu antigo pretendente. Os dois se casam e Inês, enfim, goza de liberdade. E a usa para trair o marido – fato que fica nas entrelinhas do teatro. O teatro termina fazendo referência ao ditado popular em que a peça se baseou: “mais quero asno que me leve do que cavalo que me derrube”. Inês Pereira, derrubada do “cavalo” - seu primeiro marido, representante dos valores medievais – é carregada pelo seu novo marido, o “asno” - representante da burguesa ascendente e sem o “sangue azul”.
Na primeira leitura da peça, fiquei um tanto perdida quanto ao humor de Gil Vicente, sutil e ácido. Isso se deu, provavelmente, por não ter compreendido o papel social de cada personagem e ligado isso à época. Ao compreender, contudo, qual esfera da sociedade cada um representava, compreendi a mensagem que Gil Vicente quis passar. Inês, por exemplo, exemplifica a moça que quer um casamento bom, com um homem que represente o que era valorizado pelo medievo: o cavalheirismo. Ela acaba “caindo do cavalo”, casando com um escudeiro violento e rude. No casamento seguinte, porém, ela é tão sem escrúpulos quanto seu primeiro marido.
Pero Marques representa a pequena burguesia em ascensão devido às Grandes Navegações. Não possui, porém, educação e modos requintados. Outras figuras da peça também são representativas: os dois judeus (bem caracterizados) e o padre que abusa de Lianor Vaz (representando uma crítica à Igreja), em especial.