Rodrigo1001 11/08/2024
A alegria da efabulação (Sem Spoilers)
Título: Os Vivos e os Outros
Autor: José Eduardo Agualusa
Editora: Tusquets
Número de páginas: 208
Um festival reúne dezenas de escritores na pitoresca Ilha de Moçambique. Tudo vai bem até que uma tempestade os deixa isolados, sem telefone, internet e nenhum contato com o mundo lá fora. Ao longo de vários dias, eles se afundam em paranoias e delírios que colocam em xeque a fronteira entre realidade e ficção, passado e futuro, a vida e a morte, e inquietam - em igual medida - tanto os personagens do livro quanto o próprio leitor.
Mas, falando em isolamento, algo aí lembrou da pandemia?
Pois bem, "Os Vivos e os Outros" foi concebido antes da pandemia de Covid-19 e muitos críticos viram ali uma escrita visionária do lockdown imposto pelo coronavírus ao mundo em 2020. Sobre isso, o escritor José Eduardo Agualusa disse: "Não é tanto a questão do isolamento, mas principalmente a situação mental que vivem os personagens. É essa sensação de estarem aprisionados num tempo sem tempo, que foi um pouco daquilo que vivemos durante dois anos, confinados, nós todos, em todo o mundo, nas nossas casas", ele detalha.
De fato, neste livro sublime, realidade e ficção se misturam o tempo todo. Como na criação do mundo, a história se passa em sete dias e cada capítulo é impregnado de uma poderosa e cativante escrita, de uma cadência e de um compasso que envolvem o leitor. Ao longo de uma semana, vamos sendo guiados com curiosidade e leveza pelos mistérios da ilha de Moçambique, que parecem ser indissociáveis do fazer literário, em um tempo que se dissolve. O tempo, aliás, é outro tema central neste livro: o passado colonial e o presente da ilha, os sete dias que delimitam o desenrolar da narrativa e, principalmente, como a percepção do tempo é alterada a partir do momento em que não há celulares e outros aparatos tecnológicos.
Terminada a leitura, ouso dizer que José Eduardo Agualusa nunca foi tão longe no lirismo da sua prosa e nem, ao mesmo tempo, no desenho de seus personagens. Um livro apoiado no poder das palavras e do imaginário. Belíssimo na forma e no conteúdo.
Recomendo este livro para todas as pessoas que apreciam livros onde as fronteiras entre a realidade e ficção são propositalmente borradas, onde a narrativa é rica em descrições e reflexões e onde elementos de metanarrativa estão presentes.
O livro inteiro, na verdade, é um verdadeiro presente para o leitor. Há nele a alegria da efabulação que se perdeu em boa parte da literatura mundial contemporânea. Agualusa, na verdade, com sua escrita lírica e sensível está galgando um lugar muito especial no meu rol de escritores prediletos.
Leia sem pestanejar!
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Passagens interessantes:
"A felicidade é discreta, instala-se e não damos por ela. Depois, quando se vai embora, reparamos que esteve ali." (pg. 59)
"Passamos cada vez mais tempo mergulhados na realidade virtual. Privados dela, estranhamos. Dá-se algo semelhante se passarmos dez horas seguidas concentrados na leitura de um bom romance. No instante em que finalmente pousamos o livro e nos levantamos, o mundo ao redor parece-nos falso, incoerente, pouco sólido." (pg 96)
"O futuro, acredita, está arquitetado de forma a desmentir qualquer previsão. Se imaginarmos um acontecimento, com a maior soma possível de detalhes, este quase nunca ocorre ou, pelo menos, nunca ocorre tal e qual o imaginamos." (pg 135)