Alexandre Kovacs / Mundo de K 05/09/2020
Angélica Freitas - Canções de Atormentar
Editora Companhia das Letras - 112 Pág. - Capa Ale Kalko (Foto de Capa: Mirror, de Camile Sproesser, 2019, óleo sobre linho) - Lançamento: 05/08/2020.
Em seu terceiro livro, depois dos premiados Rilke shake (Cosac Naify, 2007) e Um útero é do tamanho de um punho (Cosac Naify, 2012), a poesia forte e feminina da gaúcha Angélica Freitas amadurece sem dúvida, mas continua afiada e divertida (mesmo quando trata de coisas sérias), sintonizada com a rebeldia dos corações jovens, essa postura tão necessária para confrontar a realidade de um mundo cada vez mais absurdo (a poetisa é legal / o que ela escreve não faz mal // a poetisa tem um blog / onde ela posta canções de rock // a poetisa lançou um livro // "o escaravelho do descalabro" // ela escreveu ajoelhada no milho // a poetisa é boa pra caralho [...]).
Em Canções de Atormentar o arsenal da poeta pode variar da autobiografia até a crônica sobre a vida nas grandes cidades, algumas vezes divertida como em a história mais velha do rock'n' roll (poeta, não / poetisa / que bonita a poetisa / é uma sacerdotisa // a ela, os sabonetes / os perfumes, as loções / a ela, todas as flores / todas as menções // que bonita a poetisa // ela sabe onde pisa / nenhuma banquisa / por mais fina que seja / se rompe sobre seus pés [...]), por outras emocionante, afinal como não se identificar com a beleza do poema ana C., sobre a nossa deusa Ana Cristina Cesar, que tanta falta faz (ana c. me salvou de ser técnica em eletrônica / aos dezesseis / quando entrou de vermelho / em minha vida / e me deixou / aos seus pés // não tive escolha / foi um baita clarão / soco na goela seguido / de cisco no olho [...]).
Mas o poema pode ser simples também como quer a vida (ou não), em alguns momentos não precisar de absolutamente nada, como nos versos ligeiros de em algum café em rosário (que bom / não querer nada / ficar sentada no café / e não querer outro café / nem mesmo água / e de repente / não querer escrever / nem ler / nada, nada / e sobretudo não querer / ir pra rua nem voltar pra casa / e muito menos / avisar alguém / do paradeiro / só ficar parada / no paradeiro / muito quieta / derrubando com as pálpebras / o sistema / (fala mais baixo / senão ele te ouve / e o garçom volta / com a conta) / capitalista / shhh capitalista).
A fina ironia de Angélica Freitas é indispensável para poetas e também para aqueles que nunca escreveram um verso, todos precisamos ser encantados e o (en)canto da sereia está vivo aqui, mesmo que a poeta diga o contrário (ah, se eu fosse uma sereia / teria mais o que fazer / do que ficar cantando pra eles / do que tentar seduzi-los // nem assoviaria, não / ao ver caravelas passar / em seu mar plano, seu mundo quadrado / no máximo um espirro, no máximo um bocejo [...]). Neste livro, o amor não poderia faltar, deixo para vocês a íntegra do poema a sônia, uma linda e sensível lição sobre a beleza que existe nas diferentes formas de amar.
a sônia
(a partir de uma série de fotos de claudia andujar)
nada de errado
esses peitos
esses braços
se alguém quiser saber
barriga, costelas, umbigo
quisemos
tudo
*
querer as pernas
de outra mulher
para depois do amor
ser quadrúpede
alguns dirão
era só
o que nos faltava
*
o que estarás
pensando, azul
de olhos fechados
o que acontece
dentro dessa cabeça
por favor me diz
que pensavas
em coisas banais
(bananas, arraias
coqueiros, praias)
menos em dinheiro
*
diante de ti
reclinada assim
nua
um homem saberia
exatamente o que fazer
e por isso mesmo
erraria
eles erraram
*
amada
vacinada
*
tomaste um líquido
que te deixou assim
acesa quando tudo
se apaga
esta manhã
estiveste na praia?
estás mais loira
do que a lua
*
me deixa por um momento
pensar que esses cabelos
são nuvens
e que deixaste de pensar
porque estás
nas nuvens
*
uma boca se oferece
quantas vezes?
mais uma vez, uma última vez
e desta vez, a outra mulher
*
quantas vezes pode
uma mulher deixar
a casa
e o trabalho virar corpo
e o corpo virar casa
e entender que volta
não existe
*
sônia, escutas?
de olhos fechados
sintonizas
a rádio tosca
transmitindo
entre ouvidos
por que foste
querer isto?
onde estavas
com a cabeça?
*
alguém um dia
te disse
tu és tão bonita
ou tu te olhaste
no espelho
e pensaste
sou tão bonita
que triste ser bonita
ser bonita o suficiente
ser bonita
Sobre a autora: Angélica Freitas nasceu em 1973, em Pelotas, no Rio Grande do Sul. Publicou dois livros de poemas: Rilke shake (Cosac Naify, 2007) e Um útero é do tamanho de um punho (Cosac Naify, 2012), reeditado pela Companhia das Letras em 2017. Sua obra já foi traduzida na Argentina, na Espanha, no México, nos Estados Unidos e na Alemanha.