Helder 21/12/2018Uma viagem pelas memórias que se vão.As Madonas de Leningrado trata de um tema pouco explorado em romances: O Alzheimer.
Marina e Dimitri estão juntos há 65 anos e por mais que Dimitri tente esconder a realidade de seus filhos, durante a festa de casamento de sua neta, fica claro para todos que Marina está cada vez mais distante e afetada pelo Alzheimer.
"Ela o está deixando, não de uma vez só, o que seria doloroso o bastante, mas numa agonizante sucessão de separações. Um momento ela está aqui, e então ela se vai novamente. Cada jornada a leva um pouco mais longe de seu alcance. Ele não pode segui-la e se pergunta para onde ela vai quando parte."
Durante o evento, enquanto convive com pessoas que já não se lembra quem sejam, Marina viaja em suas memórias, voltando a sua juventude, na Rússia, especificamente no Museu Hermitage de São Petersburgo, onde viveu durante a Segunda Guerra Mundial.
Antes da 2ª Guerra, Marina era guia no Hermitage e se orgulhava por conhecer todos aqueles corredores, salas e suas obras de arte. Da Vinci, Rubens, Rembrandts, Rafael e suas Madonas.
Durante a guerra, ela passou a ter uma nova função: empacotar os quadros do Museu para serem enviados para Moscou. O Partido sabia o valor das obras de artes existentes ali, e com os nazistas cada vez mais perto de invadir São Petersburgo, decidiram transportar o máximo que pudessem do museu para Moscou.
De repente, as lindas salas com obras de arte que eram percorridas diariamente, passam a ser somente diversas paredes com molduras vazias.
No inicio isso incomoda pouco aquelas pessoas que sempre viveram ao redor do imponente museu, mas a guerra se estende, e aos poucos as lembranças do que havia naquelas molduras vão desaparecendo. Juntando-se com Anya, uma Babuska, velha senhora que há anos trabalha no museu ajudando os visitantes, elas começam a criar o Palácio de Memorias, andando diariamente entre as molduras vazias e relembrando o que tinha existido em cada sala.
O mais curioso ainda, é que Anya conta que antes de Marina trabalhar ali, Stalin pegou diversas obras famosas e as vendeu para arrecadar dinheiro para o Partido. Sendo assim, o Palácio de Memórias foi uma peça de resistência, para que Marina e o Museu não perdessem suas memórias.
Mas o tempo é cruel. No fim estas memórias acabaram sendo afetadas por todo o sofrimento trazido pela guerra, e ao invés da lembrança das artes, o que Marina levou na sua vida foram as tristes lembranças daquela época difícil, aguardando bombardeios sobre o telhado de vidro do museu, passando frio e passando fome ao dividir 250 gramas de pão em 3 “refeições” diárias enquanto morava no museu com seus tios. Este período ficou conhecido como o Cerco de Leningrado e durou 900 dias.
Mas ela nunca dividiu estas lembranças com seus filhos. Então hoje quando ela se afasta, eles não sabem para onde ela está indo.
A autora mistura as memorias do passado e do presente e para Marina, aquilo que era uma salvação no passado, hoje pode ser um abismo que a leva para um caminho sem volta. O que sobra de você quando você já não se lembra mais nem seu nome?
O livro é uma singela reflexão sobre a impossibilidade de se vencer a força do tempo.
Seguimos a vida alimentando nosso Palácio de Memorias, mas seremos capazes de mantê-lo em pé até o fim, frente à força do tempo?
Este livro mexeu bastante comigo. Primeiro pelo lado histórico, contando um evento incrível que é a retirada das obras do Hermitage por medo dos nazista. Nunca ouvira falar sobre isso e tive que ir procurar no Google para confirmar que foi verdade. Depois, pelo lado do Alzheimer e a fragilidade do fim da vida. Acredito que o que levamos da vida são os bons momentos cultuados. Ali estão nossas reais vitórias. Lembranças sobre nossas vitorias e realizações. Ai me machuca ver meu pai hoje numa cama sem nenhumas destas memorias. Ele já não é mais alguém. Aquele que me criou e me mostrou a vida hoje é uma casca oca, sem a sua história, parado num vácuo do tempo.
Impossível não refletirmos sobre nossos pais, e até mesmo sobre o que nos espera.
Uma leitura necessária. Colecionemos nossas lembranças e que elas sigam conosco até o fim de nossa jornada.
"Às vezes, quando ela olha, tudo que vê é uma parede vazia. É assustador esse esquecimento, como se mais um pedacinho de sua vida estivesse escapulindo. Se ela deixar todas as pinturas desaparecerem, terá ido com elas."