spoiler visualizarEuriano 09/12/2021
E a verdade..:
Jesus nunca quis sua igreja tremendo de medo dentro dos templos, sustentando políticos em Brasília para que empurrassem nossa religião à força a toda a sociedade. Muito pelo contrário. Jesus nos quer ?resplandecentes num mundo cheio de gente corrompida e perversa? (Fp 2.15).
Infelizmente, o que temos aprendido em nossas comunidades é a ignorar os clamores da sociedade, fugir dos perigos do mundo e reclamar: das novelas, dos programas humorísticos, dos artistas, de beijos em histórias em quadrinhos, dos projetos de lei do Jean Wyllys, da imprensa que não dá destaque aos eventos gospel que achamos que eles merecem.
Conquistar um país ou continente para a religião cristã é fácil: bastam força, chantagem, censura, politicagem, pressão numérica e troca de favores políticos. Reclamando tão alto quanto aprendemos a reclamar, nunca faltarão políticos inescrupulosos para reclamar conosco e prometer as mudanças que queremos ouvir. Evangelizar, resgatar dos braços da morte, levar o reino de Deus para quem sofre no mundo é outro desafio, por vezes anônimo e artesanal, longe dos holofotes e dos gabinetes, que exige lágrimas e suor. Foi para isso que Jesus nos enviou, assim como o Pai enviou a ele.
?Evangelizar? é algo muito diferente disso. Assim Jesus instruiu seus discípulos: ?Vão e anunciem que o reino dos céus está próximo. Curem os doentes, ressuscitem os mortos, purifiquem os leprosos e expulsem os demônios. Deem de graça, pois também de graça vocês receberam? (Mt 10.7-8). Evangelizar, portanto, é proclamar que o reino de Deus está acessível a quem quiser conhecer uma nova vida, ?uma vida plena, que satisfaz? (Jo 10.10).
Quando me perguntam qual o papel do jornalista na promoção do reino de Deus, costumo responder que é o mesmo de qualquer outro seguidor de Jesus: ir como cordeiro no meio de lobos, ter foco no trabalho, entrar na casa das pessoas com uma palavra de paz, curar doenças e anunciar um reino de justiça e amor.
Talvez um médico entenda ?curar os enfermos? mais literalmente, mas há diversas formas de tratar as doenças das pessoas e da sociedade. Um jornalista de política pode denunciar a corrupção ou a situação de grupos vulneráveis. Um jornalista de economia pode mostrar exemplos de empreendedores dedicados a atividades sustentáveis. Um jornalista de música pode criar espaços para artistas à margem das engrenagens da indústria ou recuperar quem foi alienado dela. Em todo caso, anunciar o reino de Deus é anunciar um sistema de valores, ?uma dimensão real da criação de Deus, um lugar onde a vontade de Deus, e somente ela, é feita?, na definição do escritor Rob Bell.
Pode parecer paradoxal, mas os editores adoram isso: em um mundo abarrotado de informação, são bizarrices como essas que geram cliques e compartilhamentos. Enquanto estamos entretidos com o show de horrores nas primeiras páginas, os projetos de lei e as medidas econômicas que realmente impactam a vida do cidadão comum vão para algum canto das páginas internas.
O ponto culminante talvez tenha sido a comparação que Ernesto Araújo fez ao dizer, com a voz embargada, que o presidente Bolsonaro era ?a pedra que os órgãos de imprensa rejeitaram, a pedra que os intelectuais rejeitaram, que os especialistas rejeitaram... Essa pedra tornou-se a pedra angular do edifício do novo Brasil?.25 Trata-se de uma ilustração usada na Bíblia Sagrada para referir-se a ninguém mais ninguém menos que o próprio Cristo (1Pe 2.4-8).
?Deus escolheu as coisas vis, de pouco valor, desprezíveis, que podem ser descartadas, as que não são, que ninguém dá importância, para confundir as que são, para que nenhuma carne se glorie diante dele?, e, apontando para o presidente, concluiu: ?É por isso que Deus te escolheu?.26 O vídeo repercutiu sobretudo por seu aspecto cômico, com um Bolsonaro impassível como um soldado ao lado do pregador que o chamava de vil, fraco, descartável, louco, desprezível etc. A mensagem religiosa, contudo, era clara: o próprio Deus havia escolhido Bolsonaro. Deus era o ?sábio? por trás de sua eleição, e a partir de então Deus o capacitaria para finalmente fazer o sistema funcionar. Segundo esse raciocínio, o despreparo e a incompetência deixam de ser um problema e se tornam uma virtude ? uma espécie de ?atestado? da presença de um Deus que se diverte confundindo os sábios.
O texto conta que, com o rápido crescimento daquele primeiro grupo de cristãos, começaram a surgir deficiências na organização da distribuição de alimento para as viúvas. Uma reunião foi convocada pelos doze apóstolos, os líderes da igreja, que diante da situação propuseram o seguinte: ?Escolham sete homens respeitados, cheios do Espírito e de sabedoria, e nós os encarregaremos desse serviço. Então nós nos dedicaremos à oração e ao ensino da palavra?. O texto diz que ?a ideia agradou a todos? (At 6.1-5).
Difícil não lembrar da oração na casa de Bolsonaro na noite de sua eleição para presidente, saudada por muitos evangélicos como um sinal de que o Brasil estava finalmente se curvando a Deus. Imaginem só: um político orando por outro em nome do Senhor Jesus! O famoso texto de Salmos 33.12, ?Feliz é a nação cujo Deus é o Senhor?, aparecia em toda parte nas redes sociais. E, no entanto, um ano depois, quase todos os que, durante a oração, estavam de cabeça baixa e rosto comovido diante das câmeras haviam se afastado do governo, na maioria das vezes de forma escandalosa.
O Sermão do Monte é um discurso feito por Jesus no início de seu ministério, e considerado um dos mais importantes da história mundial. Nesse sermão, o pensamento de Jesus aparece organizado em diversos segmentos, que dão novo significado à relação dos judeus com sua religião, incluindo os mandamentos de Moisés, as práticas da oração, do jejum, da caridade etc. O trecho inicial, aliás, é o mais contracultural no sentido pretendido por John Stott. Trata-se de passagem conhecida como ?As bem-aventuranças? (Mt 5.3-12).
Uma das qualidades recomendadas por Jesus é a pacificação: ?Felizes os que promovem a paz, pois serão chamados filhos de Deus? (Mt 5.9). Pacificar significa apaziguar, tranquilizar, acalmar os ânimos exaltados, o que pode nos trazer à mente nossos irmãos cristãos que atuaram em conflitos étnicos, guerras civis e impasses diplomáticos, ganhadores do Prêmio Nobel da Paz como Martin Luther King Jr., Madre Teresa de Calcutá, Kofi Annan e Abiy Ahmed Ali. Mas as palavras de Jesus no Sermão do Monte são dirigidas também a pessoas comuns, como você e eu, e não apenas a líderes ou diplomatas. Seja um jornalista, deputado, engenheiro, psicólogo, motorista de ônibus ou um soldado em zona de conflito, felizes seremos se, em nosso caráter, estiver a marca da pacificação.
É possível conciliar o ódio nas redes sociais com a mensagem de Jesus de Nazaré? É possível chamar um opositor de ?idiota? ou de ?porca? e se dizer seguidor daquele que nos manda oferecer ?a outra face? (Mt 5.39)? É possível harmonizar palavras de desprezo, sarcasmo e raiva com a fé em um Livro que nos orienta a evitar ?as conversas tolas e as piadas vulgares? (Ef 5.4)? É possível promover a paz enquanto se agride, se ofende e se acirra ânimos já exaltados?
O ensino do apóstolo Paulo é claríssimo: ?No que depender de vocês, vivam em paz com todos? (Rm 12.18).
O teólogo galês Martyn Lloyd-Jones, em seus Estudos no Sermão do Monte, diz que ser pacificador significa, ?em primeiro lugar e acima de tudo, que a pessoa aprende a não falar o que não deve?, e prossegue: ?Se ao menos todos pudéssemos controlar a língua, haveria muito menos discórdia no mundo?.18
Se estamos dispostos a ter paz apenas com quem está alinhado com nossas visões religiosas ou políticas, então não somos pacificadores ? somos apenas escravos da cultura de guerra que domina as redes sociais. Com sorte, talvez encontremos a paz como o mundo a oferece. Mas de forma alguma poderemos nos apresentar como filhos do Deus de paz.
NÃO TOQUE NO UNGIDO DE DEUS
Construindo sua imagem à semelhança dos líderes religiosos carismáticos de tantas igrejas evangélicas brasileiras, Jair Bolsonaro se vendeu como o porta-voz da verdade; o escolhido livrado da morte para salvar o Brasil; aquele que, a despeito de seu despreparo, contava com Deus para capacitá-lo; o único com a coragem para interromper o avanço das minorias e proteger os crentes dos perigos do ?mundo?. Depois de meses e anos investindo nessa construção, colheu exatamente o que colhem esses líderes religiosos: a submissão incondicional.
Literal ou não, em várias igrejas evangélicas carismáticas a ?unção? contribui para a mistificação de seus líderes. Uma vez ?ungido?, o líder está protegido debaixo de uma conveniente interpretação de 1Samuel 26.9 (?Ninguém será considerado inocente se atacar o ungido do Senhor!?) e, portanto, imune a críticas e eventuais denúncias de abusos.
O leitor mais atento já deve ter notado como as lideranças atuais tiram o texto de seu contexto original. Evidentemente, o que a Bíblia descreve nos episódios relacionados a Saul e Davi diz respeito a assas sinar ou não um rei. ?Atacar? é, aqui, um eufemismo para matar ? e não para ?criticar?, ?discordar? ou ?ir para as redes sociais falar mal?.
Mas há outra distorção. Nos dois episódios, logo após negar-se a matar Saul, Davi não se retira discretamente como sugerem alguns, nem ora em segredo como indicam outros. Pelo contrário, ele se dirige ao rei com palavras fortes:
Que o Senhor julgue entre nós dois. Talvez o Senhor castigue o rei por aquilo que procura fazer contra mim, mas eu jamais lhe farei mal. Como diz o antigo provérbio: ?De pessoas perversas vêm atos perversos?, por isso o rei pode estar certo de que eu jamais lhe farei mal. [...] Que o Senhor julgue entre nós dois e mostre quem está certo! Que ele seja meu defensor e me livre de suas mãos!
1Samuel 24.12-13,15
O pano de fundo era o medo das invasões dos filisteus, que àquela altura dominavam a rara manipulação do ferro e, com seu armamento de guerra, constituíam uma ameaça real e constante às tribos de Israel. O relato na Bíblia registra a insatisfação do povo: ?Escolha um rei para nos julgar, como ocorre com todas as outras nações? (1Sm 8.5).
Samuel entendeu aquilo como uma rejeição do povo ao próprio Deus, seu único e verdadeiro Soberano. Ainda assim, Deus consentiu ? sua única exigência foi pedir a Samuel que advertisse os israelitas para que não idealizassem demais o novo sistema de governo. Vale citar na íntegra essa advertência:
Este é o modo como o rei governará sobre vocês. Ele convocará seus filhos para servi-lo em seus carros de guerra e como seus cavaleiros e os fará correr à frente dos carros dele. Colocará alguns como generais e capitães de seu exército, obrigará outros a arar seus campos e a fazer as colheitas e forçará outros mais a fabricar armas e equipamentos para os carros de guerra. Tomará suas filhas e as obrigará a cozinhar, assar pães e fazer perfumes para ele. Tomará de vocês o melhor de seus campos, vinhedos e olivais e os dará aos servos dele. Tomará um décimo de sua colheita de cereais e uvas para distribuir entre seus oficiais e servos. Tomará seus escravos e escravas e o melhor do gado e dos jumentos para uso próprio. Exigirá um décimo de seus rebanhos, e vocês se tornarão escravos dele. Quando esse dia chegar, lamentarão por causa desse rei que agora pedem, mas o Senhor não lhes dará ouvidos.
1Samuel 8.11-18
Diante das palavras de Samuel, a resposta do povo chega a ser cômica: ?Mesmo assim, queremos um rei? (1Sm 8.19). Esse rei seria Saul.
Em Romanos 13.1, o contexto é completamente outro.
Comecemos dizendo o óbvio: sua carta foi escrita para cristãos que moravam em Roma, a sede do Império que havia transformado a Judeia numa província e a subjugava com pesados impostos e o cerceamento de vários direitos. Durante o governo de Cláudio César, por exemplo, os judeus chegaram a ser expulsos da cidade em meio a uma política de valorização dos cultos romanos. A carta de Paulo coincide com o reinado de Nero, que permitiu o retorno dos cristãos a Roma ? os quais, desconfiados, viam-se sempre divididos entre a submissão e a desobediência civil.
Assim, ao dizer em Romanos 13.2 que ?quem se rebela contra a autoridade se rebela contra o Deus que a instituiu e será punido?, Paulo está desestimulando a ideia de que ser um cristão em Roma necessariamente equivalia a ser um rebelde contra o Império. É evidente que Paulo não está, de maneira alguma, insinuando que Deus ungiu Nero ?como o profeta Samuel um dia consagrou o rei Davi? só porque ele é uma autoridade constituída. O que Paulo está dizendo é que, em geral, as leis e as autoridades são ferramentas que Deus usa para organizar o caos, proteger os vulneráveis, dignificar o ser humano, recompensar os bons e punir os maus.
Embora poucos teólogos discordem da interpretação acima, a verdade é que, na prática, os textos de Romanos 13 e 1Pedro 2 são, há séculos, usados erroneamente para justificar o apoio institucional da igreja a governos das mais diversas inclinações ideológicas. Foi assim que Lutero apoiou os latifundiários alemães na guerra contra os camponeses em 1524?1525, que a Igreja Ortodoxa Russa apoiou os esforços de guerra de Josef Stálin durante a Segunda Guerra Mundial, que o papa Pio XI ajudou a consolidar o fascismo de Benito Mussolini na Itália, que católicos e protestantes em massa aceitaram a dança macabra de Adolf Hitler na Alemanha nazista, e que padres e pastores brasileiros entregaram seus irmãos na fé para a polícia política durante o regime militar.
Neste ponto, sinto-me no dever de lembrar, especialmente ao leitor ateu e não cristão, que incontáveis cristãos puseram a própria vida em risco ao se levantar contra regimes e leis diabólicas. O pastor luterano Dietrich Bonhoeffer, por exemplo, foi preso em virtude de um controverso plano para matar Hitler e acabou enforcado numa cela nazista semanas antes do fim da Segunda Guerra Mundial. O pastor batista Martin Luther King Jr. cruzou os Estados Unidos promovendo o que ele chamava de ?crises pacíficas? a fim de debater o racismo e os direitos civis; foi assassinado em 1968. O pastor chinês Wang Zhiming liderou a resistência pacífica durante a Revolução Cultural Chinesa e morreu como mártir em 1973. O arcebispo católico Óscar Romero transformou seu programa de rádio na ?voz dos sem voz? da El Salvador dos anos 1970; enquanto celebrava uma missa em março de 1980, foi fuzilado por um atirador de elite do exército salvadorenho
Não há respaldo bíblico para afirmar que cristãos, quando necessário, não devem criticar ou confrontar as autoridades, incluindo os líderes religiosos. Pelo contrário: em 1Timóteo 5.19-20, Paulo até ensina seu discípulo Timóteo sobre como proceder quando houver denúncias contra pastores: com justiça (?Não aceite acusação contra um presbítero sem que seja confirmada por duas ou três testemunhas?) e com repreensão pública (?Aqueles que pecarem devem ser repreendidos diante de todos, o que servirá de forte advertência para os demais?). O teólogo presbiteriano Augusto Nicodemus resumiu a questão do seguinte modo: ??Não toque no ungido do Senhor? é apelação de quem não tem argumento nem exemplo para dar como resposta?.
Sempre penso no que o profeta Samuel diria caso uma multidão de evangélicos brasileiros o procurasse exigindo uma quebra na ordem política de seu país, idealizando alguém ?para nos julgar, como ocorre com todas as nações?. Imagino Samuel se entristecendo ao ver tantos crentes depositando suas expectativas não em Deus, mas em políticos. Depois, penso que nos advertiria sobre aquela fantasia: ?Este é o modo como este político governará sobre vocês?. E, então, o profeta nos lembraria de que políticos trabalharão pensando na própria reeleição, e não no povo, privilegiarão parentes, amigos e apoiadores de campanha, trocarão apoio político da imprensa por verbas publicitárias, corromperão o sistema para servir-se dele em troca de mais dinheiro e/ou mais poder e/ou mais influência, e quem sabe até usarão o nome de Deus para manipular as pessoas. E, dito tudo isso, a multidão responderia: ?Mesmo assim, queremos nosso político?.
ESQUERDA X DIREITA
A polarização política que tomou conta do Brasil a partir dos primeiros anos da década de 2010 deixou atrás de si uma longa trilha de destruição. Entre os seguidores de Jesus, poucas feridas foram tão doloridas quanto a propagação de ideias como ?é impossível ser cristão e ser de esquerda? e ?é impossível ser cristão e ser de direita?. Por causa desse tipo de convicção, muitos irmãos de fé romperam relacionamentos, companheiros de eucaristia se ofenderam pelas redes sociais, cristãos abandonaram suas comunidades, p astores romperam com seminários. De uma hora para outra, entendemos que não basta mais confessar que Jesus é o Senhor (Rm 10.9). Agora, ao que parece, além de Jesus é preciso algo mais para nos fazer membros do mesmo corpo. É preciso ser de direita. Ou de esquerda.
Devido ao algoritmos das redes sociais, que filtra o que você deve ver conforme o que você busca, curte e comenta, quem se inclinava à esquerda passou a interagir apenas com conteúdo tido como ?de esquerda?; quem se inclinava à direita, apenas com conteúdo ?de direita?. Nesta nova realidade polarizada, se você é de esquerda, não pode achar que houve corrupção no governo do PT, por exemplo; se é de direita, não pode ser a favor de leis de incentivo à cultura. (Para se ter uma ideia, certa vez fui repreendido por um leitor por ter escrito que a contracultura cristã é ?resistência? à cultura vigente; segundo ele me informou, apenas esquerdistas poderiam usar a palavra ?resistência?.) Foi essa polarização que nos conduziu ao segundo turno das eleições de 2018, e é essa a polarização que continuou a ser alimentada mesmo após a posse de Jair Bolsonaro ? a tal ponto que, mesmo diante de uma pandemia da gravidade do coronavírus em 2020, foi impossível evitar que o debate descambasse para um confronto entre axiomas de direita e de esquerda.
Simplificar a realidade em um alto contraste desses é sempre perigoso, sobretudo quando se procura encaixar o cristianismo em definições tão humanas e imprecisas quanto direita e esquerda. Em parte, porque é um crime contra a narrativa bíblica como um todo, na qual diversas tensões aparentemente conflitantes precisam ser mantidas em prol do equilíbrio. Mas, especialmente, porque os cristãos foram previamente destinados ?para se tornarem semelhantes à imagem? de Jesus Cristo (Rm 8.29), e Jesus simplesmente não era assim. Pelo contrário: quando montou sua equipe de colaboradores mais próximos, os doze discípulos, escolheu ao mesmo tempo Simão, o ?zelote?, um revolucionário anti-imperialista inclinado à luta armada, e também Mateus, um cobrador de impostos a serviço dos romanos (Lc 6.12-16). Seu ministério não se encaixava nos partidos religiosos e políticos de sua época, como o dos fariseus, dos saduceus, dos essênios e dos já mencionados zelotes; em vez disso, Jesus fazia questão de enfatizar que seu reino não era deste mundo (Jo 18.36).
Na época de Jesus, obviamente, não existiam os conceitos de ?direita? e ?esquerda?. Esses termos surgiram durante a Revolução Francesa (1789?1799), em referência à posição que os grupos políticos ocupavam na Assembleia Nacional: os representantes da aristocracia, partidários do rei, da igreja e da sociedade de classes, sentavam-se à direita, ao passo que os representantes da burguesia, os republicanos e os liberais sentavam-se à esquerda. A partir daí, grosso modo, ser ?de esquerda? passou a significar lutar por igualdade social mesmo à custa das estruturas vigentes, e ser ?de direita?, por sua vez, passou a significar acreditar na importância da ordem social e da tradição.
A Bíblia, aliás, é o livro que, diante do exílio de Israel em terras babilônicas, instrui seu povo a construir casas numa nação estranha, cuidar dos jardins, casarem suas filhas e filhos e buscarem a prosperidade da cidade para a qual Deus os havia deportado, ?pois a prosperidade de vocês depende da prosperidade dela? (Jr 29.4-11). Trata-se, nesse aspecto, de uma visão vinculada à direita.
A mesma Bíblia, contudo, também diz que Deus não faz distinção entre um escravo e seu senhor (Ef 6.9). Seus profetas repreendem os empregadores que ?roubam o salário de seus empregados? (Ml 3.5) e advertem que as ?vacas gordas?, isto é, as ?mulheres que oprimem os pobres?, um dia ?serão levadas com ganchos no nariz? (Am 4.1-2). O apóstolo Tiago, por sua vez, assim repreende os ricos cujo salário foi obtido ?de modo fraudulento?: ?A mesma riqueza com a qual vocês contavam devorará sua carne como fogo? (Tg 5.1-5). É, visivelmente, uma visão de mundo crítica ao status quo, associada a uma mentalidade de esquerda.
A Bíblia, como um todo, nos oferta um valoroso equilíbrio. Mas a cultura vigente, a lógica das redes sociais, nos quer divididos e espumando de raiva uns contra os outros.
Criamos uma caricatura para cada lado.
Tanto nos acostumamos a ouvir que toda pessoa que advoga valores ligados à direita é fascista, reacionário e insensível ao pobre que nem percebemos que isso é apenas uma caricatura. Assim como é uma caricatura que todo aquele inclinado a ideias associadas à esquerda seja comunista, ?abortista? ou defensor de criminosos em detrimento das vítimas. Isso simplesmente não é verdade. A fim de cultivar o equilíbrio proposto pela Bíblia, precisamos abandonar urgentemente a mania de comparar uma virtude do ?nosso? polo com uma caricatura do polo oposto.
Se você é capaz de colocar as armas no chão por alguns instantes, pare e pergunte a si mesmo: será que é preciso ser comunista para entender que o Brasil tem deficiências de oportunidade históricas que precisam ser reparadas de alguma forma? É preciso ter Che Guevara tatuado no braço para se indignar com o fato de que o 1% dos brasileiros mais ricos possui renda 33,8 vezes maior que os 50% mais pobres?
Por outro lado, será que é preciso ser um liberal insensível para reconhecer o papel fundamental que a economia de mercado desempenhou na diminuição da pobreza mundial? É preciso ser um fascista para reconhecer a importância de recompensar devidamente os profissionais que se empenham e se especializam em seu trabalho? Será que o mero processo civilizatório não basta para nos convencer de que o Estado deve punir os criminosos exemplarmente? Somente direitistas têm o direito de reclamar do excesso de burocracia para empreendedores no Brasil?
Se respondermos sinceramente a todas essas questões, diante de Deus e da nossa consciência, veremos que somente o populismo, a caricatura e a mentalidade contenciosa das redes sociais nos mantêm isolados nos extremos de um espectro político muito mais complexo que as simplificações que a cultura do ódio nos vende diariamente pela internet.
Não há problema algum o cristão se reconhecer mais à direita ou mais à esquerda do espectro político. O problema é quando, acriticamente, compramos todo o ?pacote? desta ou daquela ideologia política e desprezamos e humilhamos os que entendem a sociedade de forma diferente.
TEOLOGIA DA PROSPERIDADE
Foi exatamente nos anos 1980 que o neoliberalismo, enquanto monopolizava o debate econômico, encontrou um correspondente perfeito dentro do universo religioso. Uma corrente que usava a Bíblia para justificar o acúmulo de bens e legitimar o lucro ganhou o nome de ?teologia da prosperidade?, embora, como ?teologia?, seja repudiada por praticamente todas as linhas protestantes históricas.
A expansão da teologia da prosperidade está intimamente ligada à febre dos televangelistas do início dos anos 1980. Pregadores como Jim Bakker, Oral Roberts e Kenneth Hagin criaram uma interpretação bíblica na qual a fé e o empenho do cristão são, necessariamente, recompensados em forma de saúde física e prosperidade material ? consequentemente, dificuldades financeiras e doenças se tornam provas da falta de empenho e de fé. Esse evangelho da prosperidade interpreta o ?venha o teu reino? da Oração do Pai Nosso como uma experiência material perfeitamente submissa à lógica capitalista: status, poder e
dinheiro não apenas deixam de ser motivo de culpa, mas se tornam o objetivo principal de todo um sistema religioso.
Até desembarcar no Brasil, nos anos 1990, o evangelho da prosperidade arrastou consigo diversos outros movimentos controversos, como a Teologia do Domínio, a Confissão Positiva, a Lei da Semeadura e a Palavra de Fé. Todas essas correntes soavam muito naturais às alas mais carismáticas e supersticiosas da igreja evangélica, gerando o amontoado de denominações em um movimento que se convencionou chamar de ?neopentecostalismo? ? representado no país por uma galeria de líderes midiáticos como Valnice Milhomens, Renê Terra Nova, Valdemiro Santiago, Edir Macedo, Estevam e Sônia Hernandes, Silas Malafaia e R. R. Soares.
Embora tanto o neopentecostalismo quanto o neoliberalismo brasileiro já estivessem em gestação desde pelo menos a eleição de Fernando Collor de Mello, foi a partir do Plano Real, em 1994, em 1994, que ambos os fenômenos ganharam corpo. Fernando Henrique Cardoso se elegeu presidente prometendo privatizações, mudanças no papel dos sindicatos e quebra de monopólio.
A contragosto, era chamado de ?neoliberal?. De qualquer modo, foi a partir de seu governo que o Brasil quebrou o ciclo da hiperinflação, estabilizou sua economia e saiu do subdesenvolvimento deixado pelos militares. Estima-se que entre os governos FHC e Lula a pobreza tenha caído 67% e mais de 50 milhões de pessoas tenham sido incorporadas à classe média.19 No caso de Lula, em especial, com sua política de ?transformar pobre em consumidor?,20 houve uma expansão brutal do mercado graças à facilidade do crédito, tanto para pessoas físicas como para empresas. Ao longo dos oito anos de seu governo, a fatia do PIB representada por operações de crédito saltou de 24,6% para assombrosos 47%.21 Um terreno fértil para o evangelho da prosperidade. Agora, a Confissão Positiva ganha importância como método individual, e a Teologia do Domínio, como proposta coletiva. O crente ?determina? e ?toma posse da bênção?, e Deus ?levanta uma geração? para ?dominar? a sociedade e o mercado de trabalho.
A mensagem neoliberal propagada por Paulo Guedes faz todo o sentido do mundo para milhões de evangélicos que passaram décadas aprendendo que nossa relação com Deus se baseia na meritocracia da fé sacrificial. Que, em vez do contentamento proposto pela Bíblia, devemos buscar realização nos bens materiais. Que a ascensão profissional é promessa do Deus que não mente. Que é com dinheiro que nós nos relacionamos com as pessoas ao redor, e é com dinheiro que Deus responde às nossas orações. Não é de se espantar que, em pesquisa de julho de 2019, os neopentecostais eram o extrato social mais satisfeito com o governo de Jair Bolsonaro ? e também o mais esperançoso com suas promessas.
Tragicamente, o crescimento numérico da igreja evangélica brasileira a partir dos anos 1990 está intimamente ligado a um evangelho em que Deus não passa de uma escada que nos leva até Mamom. Em que pregadores ostentam anéis e carros esportivos como sinal de bênção. Em que o ser humano é quem arrasta Deus até si por meio de seu dízimo e de seu sacrifício financeiro. Em que a pobreza é sinal de falta de fé e não de uma realidade corrompida à espera de redenção. Um cristianismo que deixa muito claro onde estão seu tesouro e seu coração.
FRÁGEIS
Foi por causa desse entendimento que, já no século 16, os quacres romperam com o formato machista das reuniões religiosas de seu tempo e deram voz e espaço às mulheres. Foi por causa de sua fé que Louis Braille criou um sistema de leitura para deficientes visuais que leva seu nome e é usado até hoje. Foi por causa da empatia com uma menina surda que Thomas Gallaudet criou a linguagem de sinais. Foi por acreditar que todo ser vivo foi criado por Deus que Humphry Primatt iniciou o movimento contra os maus-tratos aos animais. Foi por amor aos mais frágeis que Jan Comenius acabou com o analfabetismo na Suécia e inventou a pedagogia moderna. Todos cristãos, empenhados na missão delegada por seu Mestre, de curar os doentes, libertar os cativos, dar visão aos cegos e audição aos surdos, enxergando dignidade em vidas que a sociedade de sua época julgava indignas de viver.
A esta altura do texto, o leitor mais desconfiado talvez coce o queixo e se pergunte: por que esta não é a igreja cristã que vemos no Brasil? O que aconteceu com a mensagem de Jesus para que alguém como o pastor neopentecostal R. R. Soares se sentisse à vontade para dizer que ajudar os necessitados é ?desviar os recursos destinados à evangelização? e que ?o governo arrecada impostos justamente para fazer isso??7 O que separa o ?estava na prisão e me visitaram? de Jesus e o ?bandido bom é bandido morto? de tantos que se proclamam cristãos hoje? Quando foi que o Cristo dizendo ?tive fome e vocês me deram de comer? foi substituído pelo bispo Edir Macedo dizendo que se todo o dinheiro investido na construção do Templo de Salomão fosse aplicado hoje em alimentos, ?amanhã [os famintos] sentiriam fome de novo??
Foi da divisão de uma dessas igrejas batistas, em Belém do Pará, que em 1911 surgiu a primeira Assembleia de Deus no Brasil, fundada por Gunnar Vingren e Daniel Berg, dois suecos que haviam se conhecido nos Estados Unidos durante a explosão original do pentecostalismo.
A ênfase pentecostal na experiência sobrenatural e sua escatologia pessimista (?o mundo jaz no maligno? [1Jo 5.19, RC]) veio se somar à herança missionária americana original avessa ao cristianismo social, influenciando uma igreja evangélica mais voltada para o espiritual do que para as questões imediatas de uma sociedade que, no fundo, não passaria de um palco para o mal. O rigor moral do pentecostalismo clássico vem da ênfase na doutrina da ?perda da salvação?: a ideia de que mesmo um crente fiel pode ir para o inferno se morre ?em pecado?. Já o ímpeto missionário pentecostal está intimamente ligado ao entendimento de que o Espírito Santo motiva o crente a ser testemunha ?em Jerusalém, em toda a Judeia, em Samaria e nos lugares mais distantes da Terra? (At 1.8) ? e, como já vimos, desde sempre nossa noção de ?evangelizar? é igual a subjugar, doutrinar, aculturar, e ações sociais só se justificam como armadilhas para o proselitismo religioso.
São marcas fortes do que se convencionou chamar genericamente de ?igreja evangélica brasileira?. Que ajudam a explicar, por exemplo, porque sejam tão conhecidas as opiniões de nossos líderes a respeito da homossexualidade e tão pouco conhecidas suas opiniões a respeito de um assunto muito mais presente na Bíblia, que é a justiça social. Ajudam a explicar porque o eleitor evangélico prefere votar em um candidato com uma agenda moral do que em outro com agenda social ? e isso mesmo entre eleitores mais pobres.11 Ajudam a explicar por que os políticos da chamada ?Bancada Evangélica? respondam a processos por corrupção, peculato, crime eleitoral, uso de documentos falsos, lavagem de dinheiro e estelionato12 e se unam à chamada ?Bancada da Bala? contra a Lista Suja do Trabalho Escravo13 e, ainda assim, sejam reeleitos e celebrados por tantos fiéis como verdadeiros homens e mulheres de Deus.
Martin Luther King não entendia como uma ?religião totalmente transcendental?, que produz ?uma distinção estranha, não bíblica, entre corpo e alma, sagrado e secular?,15 pode se dizer baseada na mensagem de Jesus. Mas é comum ainda hoje que pastores e líderes cristãos definam as pautas de direitos civis e direitos humanos como uma agenda ?da esquerda?, e não do evangelho. Criamos até um resposta para isso: ?Direitos humanos são para humanos direitos?, como se ?a dignidade inerente a todos os membros da família humana?16 fosse apenas para quem a faz por merecer. E, especialmente, como se nosso relacionamento com Deus fosse baseado em mérito, e não na graça.
John Stott define direitos humanos como ?o direito de ser humano e, assim, desfrutar a dignidade de ter sido criado à imagem de Deus?.17 Já o presidente Jair Bolsonaro prefere definir direitos humanos como ?o esterco da vagabundagem?.18 Bolsonaro foi eleito com um programa de governo que resumia direitos humanos a ações de ?defesa das vítimas da violência?: reformar o Estatuto do Desarmamento, conceder direito à posse de armas ao cidadão, reduzir a maioridade penal, extinguir a redução de penas de prisioneiros com bom comportamento e as saídas temporárias em datas especiais para detentos no semiaberto.
Se continuarmos a dizer que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus e não tivermos nada a declarar sobre um presídio transformado em campo de concentração, se continuarmos ignorando os bolsões de miséria das nossas cidades, e se nossos filhos encontrarem nas universidades os marxistas demonstrando mais paixão pela justiça social do que enxergam nos membros de suas igrejas... Vai ser difícil que a sociedade olhe para essa igreja como quem olha para uma cidade edificada num monte.
RELIGIÃO
?Sou católico, e minha esposa, evangélica?. Era Jair Bolsonaro no programa Os Pingos nos Is, da Jovem Pan, em entrevista a Augusto Nunes. ?É um pedido dessas pessoas. Estão pedindo um dia de jejum para quem tem fé. Então, a gente vai, brevemente, com os pastores, padres e religiosos, anunciar aí, pedir um dia de jejum para todo o povo brasileiro, em nome, obviamente, de que o Brasil fique livre desse mal o mais rápido possível.?
Enquanto os pentecostais aplaudiam, ente eles Silas Malafaia e Marco Feliciano, o pastor Guilherme de Carvalho, diretor do projeto Cristãos na Ciência e que, até semanas antes, trabalhava como diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos na equipe da ministra Damares Alves, disse que um ?presidente pode pedir a autoridades para orar e cooperar com o país?, mas ?não tem autoridade? para ?convocar autoridades religiosas nem pastores evangélicos?. Segundo ele, havia ali ?uma clara violação do princípio da soberania das esferas?. A pastora luterana Romi Márcia Bencke também foi crítica: ?Em um Estado laico, não é papel do presidente convocar jejum e oração. A tarefa do presidente é seguir a Constituição, colocar toda a sua energia para resolver junto com os demais poderes instituídos esta crise gigantesca que está instalada no país?. O pastor Antônio Carlos Costa, por sua vez, tuitou que ?jejum sem arrependimento é provocação à santidade de Deus?.7)
A disciplina do jejum faz parte da tradição de diversas religiões, como do hinduísmo, do islamismo e, é claro, do judaísmo e do cristianismo. A Bíblia está repleta de exemplos de personagens que jejuaram, como Moisés, Samuel, Neemias e Daniel, e também de relatos de jejuns coletivos diante de alguma calamidade pública. Em geral, é uma prática associada à oração, ao quebrantamento, ao arrependimento e à humilhação, e não apenas à privação de alimento. Jesus trouxe cores novas sobre o jejum, explicando a importância de fazê-lo discretamente, na presença do Pai, ?que observa em segredo? (Mt 6.18).
RELIGIÃO X ESPIRITUALIDADE
A palavra ?religião? vem do latim religio, que significa ?culto, prática religiosa, cerimônia, lei divina, santidade?. Linguistas se dividem entre as teses de que essa forma nominal teria vindo do verbo relegere (?reler, revisitar?) ou então do verbo religare (?religar, atar?). Entre os eruditos, ganha a primeira hipótese, como se religião fosse uma forma de reler e reinterpretar constantemente os textos sagrados. Entre os religiosos, ganha a visão romântica de que religião é uma forma de reconectar o humano e o divino.9 Em todo caso, ?religião? é, popularmente, entendido como um sistema de coisas que nós fazemos, lemos, debatemos, praticamos ou renunciamos em nome da fé.
Espiritualidade é outra coisa. É um atributo humano, tanto quanto a materialidade, por meio do qual nos relacionamos com realidades que não se submetem às nossas faculdades sensoriais. Segue um exemplo banal: o primeiro beijo entre dois adolescentes. A ciência/materialidade o descreverá como o contato entre as mucosas labiais por meio da qual um casal pode avaliar, com base no toque e na troca de saliva, o potencial mútuo para a fecundação, com tanta descarga de ocitocina e endorfina que nos faz fechar os olhos e nos dá prazer. Esse foi o seu primeiro beijo? Tenho certeza que não. A espiritualidade, em contrapartida, procurará explicar o que não está no campo da matéria, descrevendo o beijo por meio de canções, filmes, poemas e emoções compartilhadas. Ela não se opõe à ciência; apenas considera que há outras realidades que não estão sob os domínios dos microscópios ou das planilhas de Excel. É a espiritualidade que explicará por que arriscamos nossa integridade física a fim de ajudar alguém em perigo. Ou porque nos comovemos com coisas tão cotidianas quanto o pôr do sol ou a morte.
Bem, espero não causar grande espanto no leitor ao dizer que a mensagem de Jesus Cristo diz mais respeito ao campo da espiritualidade que ao da religião.
Ler João 4:1-38 (Mulher Samaritana)
?Creia em mim, mulher, está chegando a hora em que já não importará se você adora o Pai neste monte ou em Jerusalém? (Jo 4.21)
Jesus está nos ensinando que a religião conduziu a humanidade até ele, como as professoras conduzem as crianças do jardim de infância até seus pais. A partir de Jesus, porém, nós nos relacionamos em espírito com um Deus que é Espírito. É uma distinção clara entre materialidade e espiritualidade. Quem prova da ?água viva? já não quer saber do simples composto de hidrogênio e oxigênio. Apegar-se novamente às práticas rituais da religião como único caminho para acessar as realidades espirituais é o mesmo que regressar ao jardim de infância de mãos dadas com a professora.
O capítulo 58 de Isaías foi amplamente citado pelos que criticaram o jejum convocado por Jair Bolsonaro. Quando o texto foi escrito, o povo judeu vivia uma fase de reconstrução após ser liberto do cativeiro na Babilônia. O jejum coletivo talvez fosse imaginado como uma ?arma secreta? para potencializar o sucesso do povo. Por meio de Isaías, porém, Deus repreende fortemente o apego às minúcias ritualísticas (?Vocês se humilham ao cumprir os rituais: curvam a cabeça, como junco ao vento, vestem-se de panos de saco e cobrem-se de cinzas. É isso que chamam de jejum??) e desmascara a falta de sinceridade da nação (?De que adianta jejuar, se continuam a brigar e discutir??). Desse modo, o jejum do povo jamais chegará a Deus, pois ?jejuam para satisfazer a si mesmos. Enquanto isso, oprimem seus empregados?. Então, Isaías diz qual é o tipo de jejum que agrada a Deus: ?Soltem os que foram presos injustamente, aliviem as cargas de seus empregados. Libertem os oprimidos, removam as correntes que prendem as pessoas. Repartam seu alimento com os famintos, ofereçam abrigo aos que não têm casa. Deem roupas aos que precisam, não se escondam dos que carecem de ajuda? (Is 58.1-7)
ATEÍSMO
Contudo, também é preciso tomar cuidado com o mantra do neoateísmo, segundo o qual ?a religião é o câncer do mundo?, e com a ideia cada vez mais insistente de que a fé precisa ficar relegada a assuntos de foro íntimo, ao território das lendas e superstições. É o que defendem profetas do ateísmo como o biólogo Richard Dawkins e o já falecido jornalista Christopher Hitchens. Posto tudo o que foi dito nos parágrafos acima, quero oferecer algumas razões para não cairmos nessa esparrela.
A primeira tem a ver, ironicamente, com o irmão crente de Christopher, Peter Hitchens, também jornalista. Como Christopher, Peter abandonou a fé cristã de seus pais na adolescência, no final dos anos 1960. Dois anos mais moço, Peter ritualizou seu ateísmo queimando uma Bíblia no pátio de sua escola, em Cambridge, diante dos amigos. Gostava de se acreditar ?esperto demais para acreditar? em Deus. Enquanto isso, seu irmão Christopher ganhava notoriedade como comentarista político, alcançando fama internacional em 2007, quando lançou Deus não é grande: Como a religião envenena tudo, uma das pedras fundamentais do neoateísmo. Peter, por sua vez, virou trotskista, filiou-se ao Partido Trabalhista inglês e começou a carreira de repórter. Acontece que, no final da década de 1980, Peter se ofereceu para trabalhar como correspondente do jornal Daily Express, em Moscou, cobrindo o fim do regime soviético no Leste europeu. Por cinco anos, transitou por sociedades ateias, convivendo com ?a miséria e a grosseria?. O que deveria soar como o paraíso socialista de eficiência e justiça humanista, pelo contrário, o fez valorizar cada dia mais a sociedade cristã como referência de ética, civilidade e cortesia. Em seu livro The Rage Against God: How Atheism Led me to Faith [Raiva contra Deus: Como o ateísmo me conduziu à fé],
Peter conta como o clichê de que ?a religião é o câncer do mundo? não resistiu ao tempo que ele passou observando o resultado de seis décadas de não religião na Rússia. (?Se na época eu fosse capaz de ver a Londres de 2010, eu ficaria igualmente chocado?, alfinetou.11) Peter Hitchens voltou à Inglaterra, e hoje é um cristão engajado, membro da Igreja Anglicana.
Religião é a forma como nós organizamos nossa espiritualidade e nosso conjunto de crenças e práticas: se vamos à igreja ou se nos reunimos nas casas, se nos encontramos aos sábados ou aos domingos, se o ritmo dos nossos cânticos podem ser acompanhados com palmas ou se devemos evitar o movimento do corpo, se podemos orar todos em voz alta ao mesmo tempo, se um por vez ao microfone, se ajoelhados em silêncio ou a partir de um Livro de Oração. É esse tipo de coisa que ocupa meu tempo e minha energia? Essas coisas são, de fato, ferramentas indispensáveis para que eu cuide dos órfãos e das viúvas e não me deixe corromper pelo mundo? Será que a agenda e os discursos de nossas comunidades religiosas estão a serviço das ovelhas perdidas ou a serviço de um plano de poder para impor nosso sistema religioso a toda a sociedade?
Religião é o que leva sete homens a colocar seus melhores ternos e viajar mais de mil quilômetros para falar com seu presidente. A questão é saber se, chegando lá, eles são capazes de oferecer em vez de pedir. Se vão colocar quatro mil mãos para auxiliar num momento de crise ou se vão solicitar uma linha de crédito para erguer um templo com dois mil lugares. Se vão orar para que Deus revista o presidente de sabedoria (1Rs 3.11-12) ou se vão declarar que os ?inimigos? do presidente não prevalecerão. Se vão cobrir o Brasil com a espiritualidade de Jesus ou se vão propor rituais que a Bíblia garante que não chegarão a Deus. Se vão jogar seus ?joguinhos religiosos? ou se vão dizer ao presidente que Deus ordena que ele solte os que estão presos injustamente, que os empresários aliviem a carga de seus empregados, que os oprimidos sejam libertos, que o alimento seja distribuído no país de forma mais simétrica, que os que não tem casa sejam abrigados.
OS EVANGÉLICOS DO BRASIL
Trata-se de uma fatia demográfica que, já em 2010, incluía 26 milhões de pessoas, a maioria delas negra e parda e do sexo feminino, ganhando menos de dois salários mínimos por mês.13 Em lugares desprezados pelo poder público, abandonados por seus governantes, milhões de pessoas saem da invisibilidade social, ganham nome e voz, o título de ?irmã? e ?irmão?, têm contato semanal com a palavra escrita, ouvem que a solução não está na bebida, que há uma realidade mais justa que esta, que vale a pena acreditar no casamento, nos filhos, nos idosos. Esse grupo enorme de pessoas se reconhecia nas ruas, nos supermercados, na fila dos bancos, mas continuava invisível para a imprensa, para as grandes marcas, para os políticos em geral. Seus ajuntamentos monumentais, em ginásios e estádios de futebol, nunca eram dignos de menção. A mesma emissora que levava ao ar telenovelas kardecistas retratava pastores como charlatães e fiéis como tolos fanáticos.
O nível de sinceridade e de oportunismo nesse movimento de Bolsonaro em direção aos evangélicos é algo que cabe a Deus julgar. Mas é fato que ele enxergou um contingente do Brasil profundo até então invisível. É fato também que é a essa base religiosa que ele recorre como estratégia de comunicação em momentos mais críticos de seu governo.14 O que isso significa? Não sei dizer, mas o que sei é que sistemas religiosos, humanos, se deixam seduzir facilmente. O evangelho de Jesus, não.
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Quando aprendermos a colocar nossa religião a serviço da espiritualidade segundo Jesus Cristo, seremos o sal da terra e a luz do mundo e todos, religiosos e ateus, verão isso. Enquanto essa proporção estiver invertida e nossos ritos e rituais falarem mais alto que a voz do Cristo, na melhor das hipóteses estaremos barateando o preço do segmento ?evangélico? para que o próximo político profissional o use em seu benefício.
PENTECOSTALISMO
O pentecostalismo do século 20 é filho do movimento holiness [santidade] do século 19, e neto da doutrina da ?segunda bênção? advogada pelo pregador inglês John Wesley e outros pioneiros do metodismo no século 18. Ambos os grupos defendiam a ideia de que Deus tem duas experiências sobrenaturais reservadas para o crente: o ?novo nascimento?, que ocorre na conversão, na qual a pessoa é perdoada e se torna filha de Deus, e a ?santificação?, na qual a pessoa é purificada e alcança a santidade por meio de um contato inconfundível com o Espírito Santo. A diferença é que Wesley entendia a santificação sobretudo como um processo gradual, ao passo que o movimento holiness defendia a santificação como uma experiência instantânea e transcendente, que ?enchia? o cristão do poder do Espírito. A ?segunda bênção? já era um tema que dividia os teólogos protestantes, mas o ensino da santificação como um evento rachou igrejas.
No final do século 19, o evangelista norte-americano Charles Fox Parham enfatizou um ponto que se tornaria um divisor de águas ainda maior. Segundo ele, em Atos 1.8, quando Jesus anunciou o derramamento do Espírito Santo, a promessa não era tanto de santidade, mas sim de poder ? poder para que os discípulos fossem suas testemunhas em todos os cantos da terra. Avesso a denominações, Parham viajava pelos Estados Unidos plantando comunidades independentes e dando cursos em seu próprio nome, ensinando que os cristãos deviam orar fervorosamente para passar pela mesma experiência que os discípulos de Jesus tiveram no Pentecostes da Bíblia. Um desses alunos de Parham foi um filho de escravos da Louisiana chamado William J. Seymour. Não encontrando espaço nas igrejas tradicionais para as novas doutrinas que havia aprendido, Seymour montou uma comunidade na Rua Azusa, em Los Angeles. Ali viria a nascer, de fato e de direito, a primeira igreja pentecostal da história. Foi em abril de 1906, durante uma campanha de jejum, oração e estudo de Atos 2, que se deu o fenômeno conhecido como glossolalia, o ?falar em línguas?, uma oração ?no espírito? em palavras ininteligíveis. Até então marcada pela integração racial e pelo espaço raro concedido às mulheres, a comunidade de Seymour se tornou conhecida por oferecer ?o pentecostes? às pessoas e por defender o ?dom de línguas? como sinal definitivo da segunda bênção ? ou, como é chamado até hoje, de ?batismo no Espírito Santo?.
Minha observação:
No Pentecostes original, os discípulos acreditavam que a segunda vinda de Jesus seria iminente, portanto a Bíblia fala que eles venderam o que tinham e distribuíram com os pobres.
No pentecostalismo atual, há tmb a estase da iminência da volta de Cristo, mas o incentivo é tirar do pobre o que ele tem como garantia de herdar a vida eterna, e assim igreja pentecostais enriquecem.
?Ondas? é como os estudiosos definem as diferentes fases do pentecostalismo brasileiro. A primeira onda é a do pentecostalismo clássico, influenciado pelos movimentos norte-americanos e suecos, base das Assembleias de Deus. A segunda é a do movimento de ?cura divina? a partir do final da década de 1950, das cruzadas evangelísticas em ginásios de esporte e da ênfase nos rituais de cura física e de exorcismo, de igrejas como O Brasil para Cristo, Quadrangular e Deus é Amor.
A ?terceira onda? é também conhecida como neopentecostalismo, porque ela reinventa diversas marcas do pentecostalismo clássico.4 A glossolalia, que rachou denominações inteiras até a década de 1960, deixa de ser um cavalo-de-batalha. A ênfase em usos e costumes é relaxada. Embora a busca pelo extraordinário continue, o foco já não está nas curas milagrosas, mas na prosperidade material. A figura ameaçadora do diabo adquire uma nova grandeza no ensino da Batalha Espiritual. E o poder pregado por Charles Fox Parham é, agora, completamente ressignificado. Se na primeira onda ele estava associado ao vigor evangelístico, e se na segunda tinha mais a ver com o controle das realidades sobrenaturais para curar e expulsar demônios, no neopentecostalismo ele significa governo e influência em seu sentido mais terreno. É o ?poder que tem de ser exercido?, conforme ensinou Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, a principal denominação neopentecostal do Brasil.
O ensino da Batalha Espiritual é uma versão atualizada do maniqueísmo dos séculos 3 e 4 a.C., uma visão religiosa sincrética segundo a qual Deus e o diabo seriam forças autônomas e equivalentes brigando pelo mesmo espaço. É ?a luta do bem contra o mal.
Essa visão se estabelece como um dos pontos principais do neopentecostalismo a partir da década de 1980, criando um ambiente propício para uma espécie de guerra santa. O diabo, que até então atuava ocupando o corpo de uma ou outra pessoa do auditório, agora está em todos os males que afligem a humanidade, como doenças, misérias e desastres. ?Os espíritos destruidores estão nos germes, bactérias e vírus?, ensina Edir Macedo. ?São a principal causa de doenças. Os demônios são culpados pelo fato de o Brasil não ser um país desenvolvido.?7
Sem dúvida, é uma mensagem bastante conveniente.
A Batalha Espiritual acaba com as noções de responsabilidade social e pecado estrutural que exigem do cristão reflexão, preparo, empenho, generosidade e doação. Agora a culpa é dos demônios e o melhor que o crente tem a fazer é jejuar, orar, promover vigílias e congressos de louvor, a fim de ?amarrar? os demônios, ?em nome de Jesus?! E, nesse estado de guerra contra as hostes demoníacas, tudo é justificado: discriminação sexual, intolerância religiosa, promoção do ódio, contrainformação, espalhamento de fake news.
É dentro desse ambiente de guerra da Batalha Espiritual que surge uma corrente ainda mais perigosa: a chamada Teologia do Domínio, ou dominionismo. Com base em Gênesis 1.28 (?Sejam férteis e multipliquem-se. Encham e governem a terra. Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que rastejam pelo chão?), os proponentes do dominionismo ensinam que Deus criou o homem para governar toda a criação, mas que o pecado humano ?entregou? esse domínio ao diabo; agora, os crentes em Jesus Cristo têm a missão de reclamar o domínio sobre todas as coisas de volta.
A fim de tornar real esse ?mundo muito fortalecido?, a Teologia do Domínio recorreu ao conceito das ?Sete Montanhas de Influência?, elaborado na década de 1970 pelos fundadores da Youth With a Mission [Jovens com uma missão], pelo qual os cristãos precisam atuar sobre sete áreas fundamentais da sociedade: família, religião, educação, governo, mídia, artes e entretenimento e economia. Assim, para ?acelerar? a volta de Jesus Cristo e o estabelecimento de seu reino, os cristãos devem buscar o poder terreno, institucional, seguindo o mapa de ocupação das ?sete montanhas?. E, mais uma vez, na guerra vale tudo: conchavos políticos, aquisição de canais de rádio e televisão, extermínio dos cultos afro-brasileiros, intervenção na grade curricular das escolas públicas. Guerra é guerra.
Jesus jamais sonhou com uma nação de cristãos exercendo poder sobre os não cristãos. Pelo contrário: ?Entre vocês, porém, será diferente?, ensinou. ?Quem quiser ser o líder entre vocês, que seja servo? (Mt 20.26). Jesus é aquele que bate à porta, dizendo: ?Se você ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei e, juntos, faremos uma refeição, como amigos? (Ap 3.20). Jesus é aquele que espera até que alguém abra. Quem entra à força, dominando, baixando leis em meio a conchavos políticos, ?por sobre a cerca, em vez de passar pela porta, é certamente ladrão e assaltante? (Jo 10.1).
Na mensagem de Jesus, não há espaço para esse tipo de manipulação ? nem da parte dos políticos, nem dos religiosos. Você nunca verá um político mal-intencionado cumprindo o ?há bênção maior em dar que em receber? de Atos 20.35, nem algum empresário tomando um jatinho até Brasília para convencer nas sombras algum deputado a pensar nos órfãos e nas viúvas. Essa gente luta por cargos, ministérios, canais de televisão, por poder, domínio e política, e não para sinalizar o reino de Deus no dia a dia.
Gosto muito daquela velha frase: ?A resposta à má religião não é a não religião, mas a boa religião?. Uma boa religião é a que nos disciplina para que nos aproximemos do evangelho completo de Jesus. A má religião é aquela repleta de jargões, de ritos, de microdivisões teológicas, e da presunção que nos conduz à intolerância e à sede do poder mais humano e carnal. É assustador notar como os maus políticos se sentem à vontade sentados à mesa, negociando, com os sacerdotes da má religião. Mas é maravilhoso, e nos enche de esperança e alívio, notar que o Deus e Pai de Jesus Cristo está sempre um passo adiante dessa gente má.
CORRUPÇÃO
A grande mentira é que, por si só, tirar o PT do governo jamais resultaria no fim da corrupção ? e Aécio sabia disso. Na verdade, mesmo que tirássemos do governo o PT, o PSDB, o MDB e todos os partidos envolvidos no Mensalão e na Lava Jato, e mesmo que enxotássemos a ?velha política? para sempre e trocássemos (como trocamos) metade do Congresso nacional nas eleições seguintes,6 ainda assim haveria corrupção. E por quê? Porque a corrupção está no sistema, mas está principalmente no coração humano.
Corromper é adulterar, desvirtuar, alterar as propriedades de algo. Corrupção é usar de meios ilegais para obter vantagens. Em Gênesis 3, quando a serpente seduziu o primeiro casal no jardim do Éden, ela estabeleceu ali toda a liturgia da corrupção. Primeiro, quis falar sobre possíveis brechas na lei: ?Deus realmente disse que vocês não devem comer do fruto de nenhuma das árvores do jardim??. Em seguida, iniciou a negociação típica entre corruptores e corrompidos: ?Deus sabe que, no momento em que comerem do fruto [da árvore que está no meio do jardim], seus olhos se abrirão e, como Deus, conhecerão o bem e o mal?.
Eis o arquétipo da corrupção no coração humano: as leis estabelecem o pacto que viabiliza o relacionamento entre as pessoas; há escolhas, há renuncias, há deveres, direitos e consequências; há atenuantes (?É claro que vocês não morrerão!?), e há a sedução da vantagem ilegal (?conhecer o bem e o mal como Deus?) Por fim, o ser humano ?desejou a sabedoria que [o fruto] lhe traria? e se corrompeu por sua ambição (Gn 3.1-6).
Desde a infância, aprendemos a ler esse relato como se dissesse respeito apenas ao Sr. Adão e à Sra. Eva. Mas a história está falando também de cada um de nós.
O ensino dos apóstolos mostra explicitamente o pecado como algo entranhado no ser humano. É por isso que João, por exemplo, diz: ?Se afirmamos que não temos pecados, enganamos a nós mesmos e não vivemos na verdade? (1Jo 1.8). Escrevendo aos cristãos de Roma, o apóstolo Paulo faz uma das confissões mais pungentes do Novo Testamento: ?Não entendo a mim mesmo, pois quero fazer o que é certo, mas não o faço. Em vez disso, faço aquilo que odeio? (Rm 7.15-16). Paulo não está falando aqui de bandidos atrozes ou de pessoas com valores deturpados. Está falando daqueles que sabem o que é o certo, mas ainda assim fraquejam diante da tentação. Está falando dele, de mim, de você. É da nossa natureza esgueirar-se atrás daquilo que nos traga benefícios, seja nas brechas da lei ou fora da lei. A teologia chama isso de ?natureza caída? ou, não por acaso, ?natureza corrompida?. É como se cada um de nós fosse um carro desalinhado, defeituoso, que precisa de vigilância constante para não deixar a pista.
Numa democracia, as instituições têm independência entre si, a imprensa é forte e livre, e a corrupção pode ser denunciada. Num regime autoritário, em contrapartida, as instituições são centralizadas, as leis privilegiam castas, os adversários políticos são ?inimigos pessoais?, a Polícia Federal age a serviço do governo, o trabalho da imprensa é satanizado e, consequentemente, a corrupção pode florescer sem que ninguém se dê conta dela.
Nós, brasileiros, temos um grande exemplo da falta que a democracia e as leis fazem no combate à corrupção. Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob um regime militar. O Congresso foi fechado três vezes, 173 deputados da oposição tiveram seus mandatos cassados, a Polícia Federal e o Ministério Público eram utilizados para reprimir ?inimigos? do governo, e a imprensa trabalhava sob censura. Procure nos arquivos on-line: o assunto ?corrupção? não era sequer mencionado ? no máximo, falava-se sem muitos detalhes do combate à ?burocracia? e do socorro recorrente e misterioso aos bancos. Entretanto, o discurso preparado para a posse de Tancredo Neves, o primeiro presidente civil, já trazia estas palavras: ?Os que burlarem a confiança popular em meu governo podem estar certos de que tudo faremos para que restituam, centavo a centavo, o que tenham desviado, como atuará o Ministério Público no sentido de que paguem seu crime na cadeia. Não podemos continuar vivendo em um país em que qualquer trabalhador pode ter sua geladeira arrestada por faltar a um compromisso de pequena monta, enquanto milhões de dólares são criminosamente depositados em bancos estrangeiros?.10 O país a que ele se referia era o Brasil deixado pelos militares.
Tancredo morreu sem ler seu discurso, mas já no primeiro ano do governo de seu vice, José Sarney, as notícias começaram a vir à tona. O Instituto Brasileiro do Café (IBC) e o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) foram investigados por três auditorias independentes, que relataram órgãos ?integralmente contaminados pela inépcia, empreguismo, inoperância e corrupção?.11 Em cinco anos, tanto o IBC quanto o IAA estariam fechados. Com a Constituição de 1988, o fim da censura e diversas iniciativas de abertura dos arquivos da ditadura, mais escândalos do regime militar se tornaram públicos: envolvimento com o contrabando, associação com o tráfico de drogas, casos de extorsão de empresários, empréstimos irregulares, acréscimos ao código penal para manter apoiadores criminosos em liberdade, mordomias diversas para generais e ministros, subornos, desvios por meio de bancos públicos, e muitos outros que talvez nunca sejam esclarecidos.12 Foi só nos anos 2010 que empresas que prosperaram durante os governos militares, como a Andrade Gutierrez e a Odebrecht, foram investigadas, punidas e obrigadas a restituir.
Veja o que um informe interno do Centro de Informações do Exército dizia, em 1975, a respeito da possibilidade de divulgar as ?faltas por corrupção atribuídas até a governadores escolhidos pelos presidentes no regime revolucionário?: ?Suportaria o povo o descrédito que isso lançaria ao próprio movimento de 64? Não seria essa mais uma arma bem eficiente que nós mesmos daríamos ao marxismo internacional contra o Brasil??.13 Ou seja, para evitar a famigerada ?ameaça comunista?, para evitar o ?descrédito? que ?o povo? talvez não suportasse, mentia-se. Omitia-se. Criava-se a ilusão de que não havia corrupção, a narrativa de que existe no mundo algum regime ou sistema ou pessoa que, de tão incorruptíveis e iluminadas, dispensam as leis e a democracia. Muita gente acreditou. Muita gente acredita, ou diz acreditar, até hoje.
No Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional, o Brasil tenha terminado 2019 na 106ª posição, empatado com a Albânia e o Egito.29 O ranking leva em conta diversos indicadores, como relatórios do Banco Mundial e dados do Fórum Econômico Mundial, entre outros. Curiosamente, a última vez que a pontuação do Brasil melhorou no ranking foi em 2014 ? exatamente o ano em que Aécio Neves dizia que os brasileiros não aguentavam mais ?abrir os jornais todos os dias e ver qual é o caso novo de corrupção?. Desde então, o Brasil vem piorando ano a ano. Isso revela algo óbvio, mas do qual nos esquecemos com muita facilidade: um país mais ético não é aquele que tem menos notícias de corrupção, e sim aquele em que os corruptos são investigados, julgados e punidos por seus crimes. Países sem ?casos novos de corrupção? são, geralmente, países sob governos autoritários.
Em Como as democracias morrem, Steven Levitsky apresenta uma espécie de ?gabarito? para que seus leitores possam identificar um político com tendências autoritárias. Tal político apresenta sempre uma ou mais de quatro características: ele rejeita, em palavras ou atitudes, regras fundamentais da democracia; ele coloca em dúvida a legitimidade de seus oponentes, tratando-os como inimigos pessoais ou ?inimigos da pátria?; ele tolera ou incentiva o uso de violência política; ele admite ou propõe restringir liberdades civis. Quando esteve no Brasil em agosto de 2018, Levitsky avaliou que, dos cinco principais candidatos à presidência no Brasil, quatro não traziam nenhuma das marcas de um líder autoritário, e somente um reunia todas as características. Justamente o candidato eleito.
Os que são justos e íntegros,
que não lucram por meios desonestos,
que se mantêm afastados de subornos,
que não dão ouvidos aos que tramam assassinatos,
que fecham os olhos para toda tentação de fazer o mal,
esses habitarão nas alturas;
as rochas dos montes serão sua fortaleza.
Terão provisão de alimento
e não lhes faltará água.
Isaías 33.15-16
Que promessa linda e aliviadora num mundo em que a corrupção está por toda parte.
PROFECIA E PROPAGANDA
André Mendonça, que além de advogado é pastor presbiteriano, tomou posse sozinho e, ao usar o microfone pela primeira vez como ministro, olhando para o presidente, afirmou: ?Vossa excelência tem sido por trinta anos um profeta no combate à criminalidade. E hoje este ministro assume o compromisso de lutar pelos ideais de uma vida que o senhor tem combatido?.
Temos um problema com os fatos: qualquer pesquisa no serviço de Dados Abertos3 ou nos arquivos da Câmara dos Deputados mostra que, especialmente em seus primeiros dez ou quinze anos como parlamentar, Bolsonaro pouco se ocupou de assuntos relacionados a políticas de segurança pública ou de combate à criminalidade. Seus discursos e seus projetos eram sempre relativos aos interesses do universo dos militares.
Mas pode ser que, ao chamar o presidente de ?profeta? em seu discurso, André Mendonça tenha feito algo muito mais perigoso e contribuído voluntariamente para a construção da aura religiosa de Jair Bolsonaro. Nesse caso em especial, diferentemente dos ?conselheiros espirituais? neopentecostais do presidente, trata-se da contribuição de um evangélico de tradição reformada histórica, com formação em Teologia e integrante da equipe pastoral da Igreja Presbiteriana Esperança, de Brasília. Alguém que sabe perfeitamente o que foram os profetas da Bíblia e quão impróprio seria usar o termo em referência a Jair Bolsonaro.
Com frequência, no Antigo Testamento a palavra de Deus por intermédio do profeta confronta as autoridades dominantes ? não à toa, a Bíblia relata que muitos profetas foram assassinados (Ne 9.26; Lc 11.47-50). ?O destino pessoal dos profetas talvez não tenha sido diferente da experiência característica dos poetas que foram silenciados por regimes totalitários?, diz Walter Brueggemann, talvez o principal especialista em profetismo bíblico no mundo hoje. ?Nenhum regime totalitário consegue tolerar a palavra contrária, produtiva e subversiva do poeta.?6 Por tudo isso, parece pouco apropriado chamar de ?profeta? homens poderosos que querem silenciar a oposição e que inflamam o povo contra adversários. Melhor seria considerá-los representantes carnais dos poderes terrenos ? como os faraós ou reis da antiguidade ou como os que Jesus definiu como ?descendentes dos que assassinaram profetas? (Mt 23.31).
É difícil imaginar Elias, Amós, Zacarias ou Jesus vestindo camisetas de políticos, subindo em trios elétricos para repetir slogans de campanha ou atestando a reputação deste ou daquele candidato. Inacreditavelmente, foi isso o que pastores e líderes brasileiros fizeram na campanha de 2018 ? e não apenas os histriônicos adeptos do ?voto de cajado? de sempre, mas também homens sérios, bem-intencionados e tradicionalmente discretos. Não só se ofereceram ao ativismo partidário, mas também emprestaram seu nome e sua credibilidade pública para afiançar políticos de carreira.
A história da polarização política brasileira em geral, e do bolsonarismo em particular, é também a história de como a igreja evangélica abriu mão de sua independência profética em troca de uma agenda moral e de representatividade política.
Em um culto na Igreja Bola de Neve, liderada por Rinaldo Seixas, Kevin Leal, um norte-americano que se declara profeta e apóstolo se dirigiu a Alvim dizendo ? ou melhor, afirmando que Deus estava dizendo por intermédio dele: ?Estou lhe dando uma unção intangível do Espírito Santo que não pode ser vista por homens, mas que pode ser sentida por cada pessoa no Brasil. Não foi você que se colocou aqui. Eu