spoiler visualizarSté 08/01/2022
A miséria corrompe ou engrandece
"O livro que o leitor tem neste momento diante dos olhos é, do princípio ao fim, no todo e nos pormenores, quaisquer que sejam as intermitências, as exceções ou as fraquezas, o caminhar do mal para o bem, do injusto ao justo, do falso ao verdadeiro, da noite ao dia do apetite à consciência, da podridão à vida, da bestialidade ao dever, do inferno ao céu, do nada a Deus. Ponto de partida: a matéria; ponto de chegada: a alma. No começo, hidra; no fim, anjo", p. 701.
Esse texto não tem spoilers a meu ver, falei um pouco de algumas pessoas e da situação delas. Mas vou classificar como tendo spoilers.
Primeiro Livro de Victor Hugo que leio, essa edição da Nova Fronteira é dividida em duas partes e apresenta o texto integral, digo isso, pois vi algumas edições que são compiladas e não apresentam, por exemplo, as digressões feitas pelo autor.
Essas digressões, na minha opinião, são um pouco cansativas, especialmente quando eram sobre assuntos que não tenho muito conhecimento, mas compreendo que são parte do estilo de narrativa do autor que, além de ativista dos direitos humanos, era um estadista e nacionalista, com grande atuação na política de seu país, de modo que fica impossível separar a sua vida privada de cidadão ativamente político desse romance que é o retrato da sociedade francesa, tal como é o de muitas sociedades ao redor do mundo, até os dias hodiernos.
Lendo e assistindo a respeito da obra, vi um ponto que todos concordam, não há personagem principal. Há muitos personagens, é contada a história de vários, mas há uma dedicação aplicada em determinados figuras, que surgem em um momento e acompanham o enredo até o fim. Em pelo menos algum momento de suas vidas eles possuem algo em comum: toleram uma existência miserável.
?[...] Alias, há um ponto em que os infortunados e os infames se misturam, se confundem numa só palavra, palavra fatal, os miseráveis [...]?, p. 184, parte II.
Lá no início, na parte I, somos introduzidos ao Bispo de Digne, uma figura importante que vai ser fator determinante a cada passo de Jean Valjean até o fim, por seu único ato para com o ex-forçado. Jean é meu personagem preferido, independente do cunho religioso envolto na figura, ele é a personificação de um homem transformado.
?? São ainda homens, meu pai?
? Algumas vezes ? respondeu o infeliz?, p. 352, parte II
Existe um princípio no Direito Penal, o ?Princípio da Insignificância?, baseado nos pilares da mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; grau reduzido de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada. Somado a isso há uma excludente de ilicitude, chamada ?Estado de Necessidade?. Esta é a base da minha defesa ao crime cometido por Jean. A sociedade francesa da época, como muitas outras, não se preocupava com hediondez do crime ou conduta reincidente, com o caráter social do delito e a personalidade do agente, segue-se a lei independente de adequá-la ao caso concreto. Para quem desconhece, o melhor exemplo de aplicação do princípio e do estado de necessidade é quando uma mãe sem condições, furta uma lata de leite para alimentar seu filho.
Na parte I Cosette era apenas uma criança, jogada aos Thénardier, como uma escrava, sem infância, com preocupações distantes de uma criança, com frio e medo. E Fantine, sua mãe, fez tudo, absolutamente tudo, para vê-la confortável e feliz. Na parte II, o romance do livro nos prende, é um amor puro, leve quase sempre, pesado quando a vida dificulta a facilidade com que se ama, é devoto e quase santo. Cosette é agora uma linda moça, assim como havia sido sua mãe na juventude.
?O amor participa da própria alma. Tem a mesma natureza. Como ela, é centelha divina, é incorruptível, indivisível, imorredouro e infinito, que nada pode limitar e coisa alguma pode apagar. Sentimo-lo queimar até a medula dos ossos e vemo-lo brilhar até o fundo do céu?, p. 376, parte II.
Gavroche é outro personagem que amo de todo coração, é uma criança rejeitada e entregue as mazelas sociais, para viver como conseguir. Passa fome, frio, pratica atos reprováveis e tem um coração imenso, um coração divino e a coragem de muitos homens.
?Serviu para salvar do frio, da geada, da neve e da chuva, para abrigar do vento e do inverno, para livrar do sono na lama, que gera febre, e do sono na neve, que gera a morte, uma pessoinha sem pai e nem mãe, sem comida, sem roupa e sem asilo [...]?, p. 404, parte II ? Sobre o Elefante da Bastilha, monumento em Paris que existiu entre 1813 e 1846, serviu de abrigo para crianças de rua ?
Em suma, esse livro é uma obra, o final me trouxe lágrimas aos olhos. Não há arrependimentos! Leiam Victor Hugo, apesar das digressões rs, leiam Os Miseráveis.
"[...] As crianças pobres não podem entrar nos jardins públicos; no entanto, sendo crianças, deveriam também ter direito às flores", p. 678, parte II