Marcelo Rissi 16/01/2021
Os miseráveis (Victor Hugo)
Não é exagero afirmar, apenas para estabelecer um sucinto ponto de partida para este texto, que o romancista francês Victor Hugo (1802 ? 1885) ocupa as fileiras reservadas aos maiores e mais consagrados escritores da história da literatura ocidental (e, até mesmo, mundial). A extensa e profícua produção literária do autor compõe-se de títulos que se tornaram clássicos atemporais incontestes, incluindo-se nesse rol, entre outras, obras como ?O Corcunda de Notre-Dame?, ?O último dia de um condenado?, ?O homem que ri? e ?Os miseráveis?, essa última, a "Magnum opus" do escritor.
Engajei-me ao objetivo de ler ?Os miseráveis? como quem abraça um desafio. Um desafio pessoal há muito maturado.
A partir dos últimos meses do aterrador ano de 2020, aproveitando-me da possibilidade de melhor organização do tempo em razão da quarentena determinada pelo surto pandêmico da covid-19 ? que nos obrigou ao recolhimento e à reclusão (e, de certa forma, à introspecção) ? coloquei em prática o desafio autoproposto.
Após uma viagem épica, intensa e dramática ? por vezes, resfolegante ? que se estendeu por aproximadamente 02 (dois) meses e percorreu 1550 (mil quinhentas e cinquenta) páginas ?, encerrei, emocionado, há pouco mais de uma semana (mais precisamente, em 06/01/2021), a leitura de ?Os miseráveis?.
Desde o início da leitura, idealizei também o desafio de escrever algumas notas a respeito da obra. Não uma resenha propriamente dita, na sua acepção técnica, já que essa modalidade de texto exige estilística, estrutura e construção próprias (como leigo, não as domino). Propus-me intimamente, na realidade, à elaboração de um texto meramente opinativo.
Ao final da leitura, hesitei. Relutei em redigir qualquer escrito sobre ?Os miseráveis?. Recalcitrei, pois não me julguei ? e, confesso, ainda não me julgo ? apto a escrever o que quer que seja sobre tão grandiosa e esplêndida obra.
É impossível, embora soe exagerado, falar de ?Os miseráveis? sem nos excederemos nos superlativos. Afinal, segundo um amigo próximo ? palavras dele! ?, ?Os miseráveis? é a maior obra criada pela mente humana (no aspecto literário, evidentemente). Confirmo-o. Testemunho-o.
Intimidei-me, admito. Abordar uma obra de tamanha grandeza e de qualidade ímpar como ?Os miseráveis? é arriscar-se à superficialidade. Impeli-me, de todo modo, ao cumprimento também deste objetivo (que, para mim, é igualmente um desafio) antes que o decurso do tempo provocasse o desvanecimento das ideias, ainda presentes na memória recente.
É o que eu tentarei, então, singelamente fazer nos próximos parágrafos: consignar alguns breves comentários sobre essa grandiosa obra.
Ler ?Os miseráveis? é lançar-se a múltiplos desafios. O primeiro e mais evidente: a extensão da obra.
Pessoalmente, jamais havia imergido em leitura tão longa (o maior livro que havia ?enfrentado? até então fora, creio, ?A montanha mágica?, do alemão Thomas Mann, com aproximadamente 850 [oitocentas e cinquenta páginas]). ?Os miseráveis?, porém, contêm, aproximadamente, o dobro de número de folhas, o que, no quesito extensão, representou-me um passo à frente no "degrau" dos calhamaços de clássicos que me propus a ler ao longo da vida.
Apenas para se retratar o tamanho desse trabalho, a obra é dividida num total de cinco partes (intituladas ?Fantine?, ?Cosette?, ?Marius?, ?Idílio na rua Plumet e Epopéia na rua Saint-Denis 1862? e ?Jean Valjean?), segmentadas (cada parte), ao seu turno, em diversos livros. Esses (os livros), por sua vez, são subdivididos em diversas dezenas de capítulos.
A vastidão de uma obra como ?Os miseráveis? reclama, portanto, atenta concentração. Isto porque, incontáveis personagens visitam a narrativa ao longo de suas páginas. Alguns, porém, com participações espaçadas no tempo e na cronologia do enredo, de modo que, à medida que avançamos, somos igualmente compelidos à revisão, retrocedendo a fim de rememorarmos a origem, a posição e a participação de determinados personagens na narrativa. Essa é, creio, a forma mais eficaz ? e única possível ? de se manter a linha de raciocínio e o acompanhamento da história.
Como se não bastasse, em ?Os miseráveis?, o autor se propõe ao desenvolvimento de uma narrativa predominantemente ficcional que atravessa décadas. Sem qualquer "spoiler", mas apenas para ilustrar, a personagem Cosette, já adulta ao final do romance, sequer é nascida no início da obra. Naturalmente, portanto, pela forma de construção e desenvolvimento do enredo - que, repita-se, retrata período que se arrasta por décadas -, ?Os miseráveis? abrem caminho a um incontável número de situações, fatos e cenas, por vezes aparentemente dispersos, mas que se entrelaçam ao longo da narrativa e, sobretudo, ao final da obra, ligando-se ao fio condutor que compõe o tema central.
Concentração, foco e, por vezes, revisão numa obra como essa ? extensa em tamanho e complexa/intrincada em conteúdo ? são premissas essenciais ao acompanhamento da narrativa e compreensão do seu desfecho.
A vastidão da obra, porém, não é o único desafio a que se expõe o leitor. ?Os miseráveis? é obra marcantemente construída a partir de diversas, longas ? e, por vezes, altamente abstratas e poéticas ? digressões históricas e sociais, que entremeiam a narrativa principal. Essas citadas digressões, que funcionam como pontes para a introdução de fatos que comporão e darão sequência à narrativa principal, consubstanciam verdadeiras e sofisticadas aulas, desenvolvidas a partir de amplo e refinado conhecimento do autor, que demonstrou domínio sobre áreas como história, filosofia, direito, sociologia, literatura, religião e, até mesmo, arquitetura urbana, preservação ambiental e proteção sanitária.
Acompanhar ?Os miseráveis?, portanto, é como ler, simultaneamente, dentro de um livro de ficção, diversas obras técnicas que abordam múltiplos conhecimentos gerais, todos desenvolvidos minuciosamente, com espírito crítico e embasamento teórico.
Para ilustrar, o livro primeiro da segunda parte da obra, ao longo de aproximadamente 60 (sessenta) páginas (considerando-se, para tanto, a versão da editora Nova Fronteira), desenvolveu ampla e minuciosa digressão sobre a batalha de "Waterloo", esmiuçando, de forma por vezes poética e altamente metafórica, aspectos e detalhes históricos não apenas do confronto em si, mas do período que lhe antecedeu.
Houve, ainda, a descrição de diversas estratégias de guerra, além de rica e contundente narrativa expondo, de maneira explícita, as consequências e os resultados sangrentos e nefastos desses confrontos armados, o que, segundo minha interpretação, constituiu evidente crítica do autor à solução bélica de conflitos.
Diversas outras digressões permeiam a obra. Há, a propósito, análise crítica, a partir de recorte histórico, da situação de crianças em contexto de vulnerabilidade social (sobretudo daquelas abandonadas pela própria família nas ruas de Paris, na época da narrativa). O livro que contém essa digressão (parte terceira da obra), a par de aguçar a sensibilidade do leitor quanto ao delicado problema proposto, convida à reflexão, numa análise mais ampla e atual, acerca de correlatos problemas sociais hodiernos, infelizmente tão comuns e presentes em nosso país.
Há, ainda, interessantes e profundas digressões históricas atinentes à formação de ordenações religiosas, com ampla indicação de datas e de líderes religiosos. Neste ponto, o autor suscitou críticas sutis, nas entrelinhas, sobre temas afetos às clausuras nos conventos e à falta de razoabilidade de regras exacerbadamente rígidas de hierarquia e de disciplina, aptas, inclusive, à provocação de atrofia intelectual e neutralização de habilidades.
Há digressões, também, sobre guerras, revoluções, insurreições e revoltas (conceitos com traços distintivos devidamente explicitados pelo autor). Neste ponto, mediante análises minuciosas quanto a fatos, datas e personagens históricos, o autor destacou e relacionou diversas conquistas obtidas pelos povos, a duras penas, a partir do confronto e do enfrentamento à tirania (por vezes, com derramamento de sangue), citando, por exemplo, o direito conquistado ao sufrágio, à liberdade individual, à igualdade, à propriedade, à distribuição adequada de renda e a condições dignas de trabalho. Evidentemente, a revolução francesa (1789-1799), a revolução de julho de 1830 e a revolta anti-monarquista de Paris de 1832 são temas detalhadamente abordados ao longo da narrativa.
Essas são apenas algumas das digressões, entre outras, que a obra aborda.
Quanto à narrativa ficcional em si, não me estenderei exageradamente, até mesmo para evitar ?spoilers?. Apenas para traçar um panorama geral: Jean Valjean é um dos personagens principais. A obra descreve-o como pessoa de inteligência mediana, sem grandes atributos intelectuais, mas apto à realização de diversos tipos de atividades. A ausência de oferta de trabalho na França, porém, conduz o personagem à situação de desemprego e, consequentemente, à exclusão social, embora ele ? Jean Valjean ? pudesse, quisesse e, sobretudo, tentasse desenvolver função lícita.
A situação agrava-se pelo fato de que Jean Valjean, em determinado ponto da narrativa, assume os cuidados da irmã, também desempregada e, além disso, viúva e com filhos menores.
Num ato de desespero e impelido pelas circunstâncias narradas, Jean Valjean, numa madrugada, desfere um golpe no vidro de uma padaria e, após, dela subtrai um pão para dividir entre a irmã e os sobrinhos. O crime é investigado e, descortinada autoria, Jean Valjean é processado, julgado e sentenciado ao cumprimento de pena de 5 (cinco) anos de trabalhos forçados nas galés. Essa sanção é recrudescida, ao final, para 19 (dezenove) anos, em razão de três tentativas de fuga do personagem durante o cumprimento da pena.
Apenas um parêntese: para quem é estudante de Direito, a situação de Jean Valjean oportuniza pertinentes debates sobre temas como excludentes da ilicitude (estado de necessidade) e da culpabilidade (inexigibilidade de conduta diversa), bem como aplicação e limites de incidência de inúmeros princípios constitucionais, como o da proporcionalidade (sobretudo no aspecto de vedação ao excesso) e o da humanização na execução da pena.
Retornando à resenha. Embrutecido, Jean Valjean deixa as galés após o cumprimento da pena imposta, que ele considerou desproporcional e exagerada. Em liberdade, é censurado e manietado socialmente, sendo-lhe negado atendimento em estabelecimentos comerciais e estadias/estalagens, embora ele se dispusesse a pagar, pronta e adiantadamente, pelos alimentos e pelos serviços solicitados (a partir dos valores obtidos com o pecúlio auferido no período de cumprimento de pena).
Etiquetado como criminoso, Jean Valjean é abandonado à próxima sorte nas ruas e, revoltado contra a sociedade e contra o Estado, passa a alimentar, em seu íntimo, indomável e incontido sentimento de vingança. Reconhece, interiormente, o seu erro ? furto do pão ?, mas entende que, por um fato de somenos gravidade cometido com propósito nobre, foi dura e desproporcionalmente apenado.
Jean Valjean é, ao final, acolhido na casa de um bispo (bispo Charles-François-Bienvenu Myriel) e essa convivência é o ponto de partida para a reconstrução e a ressignificação interior, embora ainda incompleta, de Jean Valjean.
Essa é a gênese da narrativa, que sofre, deste momento em diante, diversas reviravoltas e reveses, poupadas nesse texto para evitar ?spoilers? e, sobretudo, para permitir ao leitor o acompanhamento paulatino da narrativa, à medida que as situações se desenvolvem.
Ao lado de Jean Valjean, compõem o enredo, entre outros personagens icônicos, Fantine, Cosette, Javert, o casal Thénardier, Marius, o senhor Gillenormand e Gravoche. Pretender resumir a obra, considerando o emaranhado complexo de situações e a atuação de cada personagem, é trabalho impossível e impensável, ao qual, portanto, não me arrisco.
De todo modo, algumas reflexões viabilizadas a partir da narrativa merecem menção.
O processo de paulatina reconstrução interna de Jean Valjean é, talvez, um dos principais pontos de destaque da obra, que norteia a narrativa do início ao fim, expressa ou implicitamente. O personagem convive com incontáveis dilemas internos (claramente manifestados nos seus solilóquios), num interminável paradoxo provocado pela antítese que carrega, em si, entre o sentimento de vingança e de revolta causada pelas circunstâncias da sua vida ? sentimento esse do qual não ele conseguiu se desapegar completamente ?, em contraste com a sua essência genuinamente boa, reavivada pelo breve convívio com o bispo e, posteriormente, pelos cuidados que ele, Jean Valjean, assumiu de outrem.
Merece menção, ainda, a participação do policial Javert na narrativa. A atuação desse personagem permite reflexões sobre os limites entre direito e justiça, buscando solucionar impasses não raros sobre qual valor deve prevalecer no caso de confronto (o direito, com a sua, por vezes, crueza? Ou a justiça, com os casuísmos e subjetivismos que ela pode ensejar, sempre a depender do crivo e da análise de quem avalia?).
Com efeito, Javert ? na leitura e na interpretação que fiz ? é pessoa de índole essencialmente boa, mas rigorosamente presa ao sistema inflexível de normas e de padrões de conduta. Irredutível e sempre resoluto, Javert cumpre, invariável e escrupulosamente, a lei e as determinações superiores, sendo, porém, incapaz de realizar juízos racionais de ponderação e de valor, limitando-se à atuação estritamente legal, na sua estreiteza literal.
A participação de Javert permite reflexões sobre os limites entre direito e justiça. Lembremos da célebre frase do jurista uruguaio Eduardo Juan Couture, que assim afirmou: ?Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça?.
O engajamento político de Marius e de seus amigos na busca e na conquista de direitos sociais e garantias constitucionais individuais mínimas em prol do povo e, sobretudo, das futuras gerações é outro ponto de destaque da obra. O momento das barricadas é o ponto alto de tensão da obra. Talvez o seu "clímax".
A participação do casal Thénardier ? especialmente do marido ? demonstra, ao seu turno, que a maldade humana, por vezes, não encontra limites.
O diálogo final da obra ? em relação ao qual, evidentemente, não adiantarei detalhes, para não emitir ?spoilers? ? é um dos mais dramáticos e emocionantes momentos de ?Os miseráveis?, deixando ao menos duas valiosíssimas lições, que fazem ruído na cabeça do leitor, por muito tempo, após o final da leitura: Victor Hugo convida ao exercício do PERDÃO e à abstenção de formação de julgamentos e juízos afoitos, açodados e irresponsáveis, muitas vezes adotados a partir do conhecimento parcial da realidade e dos fatos.
Nós nunca ? NUNCA ? sabemos o bem inconfesso que as pessoas, por vezes, praticam em silêncio. Igualmente, nós nunca ? NUNCA ? saberemos por quanto tempo as pessoas ainda estarão por aqui. Logo, perdoe hoje. Seja compreensivo hoje. É como diz aquela frase largamente difundida, cuja autoria desconheço: ?Todo mundo que você encontra está lutando uma batalha que você não sabe nada a respeito. Seja gentil. Sempre?. Essas são duas grandes e valiosas lições que a obra proporciona.
Ao longo da leitura, algumas frases e pensamentos foram, na minha concepção, tão impactantes e tão bem articulados, que fiz questão de anotá-los. Transcrevo-os:
- Sobre a luz própria da verdade, que não se compraz com exageros (metaforicamente comparados às chamas): ?Combatamos. Combatamos, mas distingamos. É próprio da verdade nunca ser excessiva. Que necessidade tem ela de exagerar? Há o que é preciso destruir, há o que é preciso simplesmente esclarecer e observar. Um exame atento e sério: que força! Não é preciso pôr fogo quanto só a luz já basta?.
- Sobre a lembrança e a saudade, que, em interpretação puramente pessoal, correlacionei com o tempo do luto: ?A lembrança de uma ausência se acende nas trevas do coração e, quanto mais distante, mais resplandecente?.
- Em tempos de negação à ciência: ?O passado, é verdade, está muito forte no momento em que nos encontramos. Ele volta. É surpreendente esse rejuvenescimento de um cadáver. Pôs-se a andar e está vindo. Tem ares de vencedor, esse morto é um conquistador. Chega com sua legião, as superstições, com sua espada, o despotismo, com sua bandeira, a ignorância, e ganhou dez batalhas nos últimos tempos. Avança, ameaça, ri, está às nossas portas. Entretanto, não nos desesperemos. Vendamos o campo em que Aníbal acampa. Nós, que acreditamos, o que podemos temer? As ideias, como os rios, não recuam. Que pensem nisso os que não querem saber do futuro. Dizendo não ao progresso, eles próprios é que são condenados, não o futuro, pois dão a si mesmos uma triste doença, inoculam o passado nas suas pessoas?.
- Ainda sobre o tópico anterior: ?A verdadeira divisão humana é esta: luminosos e tenebrosos. Diminuir o número de tenebrosos, aumentar o de luminosos, é essa a meta. Por isso gritamos: Ensino! Ciência! Ensinar a ler é acender a chama; toda sílaba soletrada lança faíscas?.
- Os maus também se ofendem (um curioso momento cômico numa obra tão densa e pesada): ?Pode-se não ter notado, mas os seres odiosos se melindram; os monstros são suscetíveis?.
- Sobre a importância de aproveitarmos a vida (e, assim, não sermos apenas meros espectadores impassivos): ?Jean Valjean, quase sem deixar de olhar para Cosette, observou Marius (...) com a maior serenidade e disse, quase sem conseguir articular as palavras: ? Morrer é fácil; não viver é que é horrível?.
Essas são apenas algumas poucas frases, entre outras tantas, que me marcaram ao longo da leitura (e que, em razão isso, compartilhei aqui, nesse espaço).
Encerro esse texto, novamente endossando as palavras de um amigo próximo: ?Os miseráveis? é a maior obra criada pela mente humana (no aspecto literário, obviamente).
Não vou me estender ainda mais nesse prolixo texto. Finalizo apenas dizendo: Obrigado, Victor Hugo. Obrigado por ter escrito ?Os miseráveis?.
Clássico absoluto!